Se vivesse naquelas barrancas sob a avenida contorno, seria eu filho de uma preta boa? Que não lavasse roupa aos domingos? Que assobiasse um canto de orixá? Vivo seria jogando descalço; chutando a bola ao mar; subindo em coqueiros como sagüis; sangrando a mão com o martelo enferrujado do meu pai.
A baía de todos os santos não seria bela, seria ela; a ilha de Itaparica uma serra ao fundo do quintal, sem mistérios, apesar de lá nunca ter estado. Os barcos do cais inexistente seriam como paralelepípedos da minha rua – e ela não os possuía. Nos barcos emborcados na praia, esconder-me-ia de vizinhos tolos; ou, talvez, fosse descoberto e adotado por uma alemã cujo filho me nutrisse um desprezo pouco sutil. Guardaria carros que aguardam o fim do jazz.
Gostaria eu de jazz? Freqüentaria vernissages por amor à arte?
Ou por um bom vinho gratuito?
Tudo seria possível caso ali me fizesse. Na Gamboa o céu é azul como em qualquer ponta de mundo ao meio dia; como em Londres, Paris, Bagdá, Bangladesh ou Tókio. Entretanto, naquele amontoado de blocos à vista certamente residiriam fantasmas meus presos entre os espaços vazios da argila.
Céu, mar, barcos e vidas não seriam radiografias da minha alma; seriam parte dela e por isso é inútil pensar que a mera descrição das coisas revele a alma de quem quer as recorde desta maneira. O relógio sem pulseiras enterrado sob o piso da sala, antes da sobreposição das pedras e cimento, já não funciona mais.
Esta percepção do passado poderia fazer a memória amar loucamente certo tipo de materialismo vil. Na areia, no barro, nos barcos e nos coqueiros da Gamboa, a lembrança da vida se perderia em profusões de ressentimentos obscuros, como espelhos turvos pelo gastar do tempo... como pequenas ondas a confundir as cores do céu refletidas no mar.