quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Gamboa.

Se vivesse naquelas barrancas sob a avenida contorno, seria eu filho de uma preta boa? Que não lavasse roupa aos domingos? Que assobiasse um canto de orixá? Vivo seria jogando descalço; chutando a bola ao mar; subindo em coqueiros como sagüis; sangrando a mão com o martelo enferrujado do meu pai.

A baía de todos os santos não seria bela, seria ela; a ilha de Itaparica uma serra ao fundo do quintal, sem mistérios, apesar de lá nunca ter estado. Os barcos do cais inexistente seriam como paralelepípedos da minha rua – e ela não os possuía. Nos barcos emborcados na praia, esconder-me-ia de vizinhos tolos; ou, talvez, fosse descoberto e adotado por uma alemã cujo filho me nutrisse um desprezo pouco sutil. Guardaria carros que aguardam o fim do jazz.

Gostaria eu de jazz? Freqüentaria vernissages por amor à arte?
Ou por um bom vinho gratuito?

Tudo seria possível caso ali me fizesse. Na Gamboa o céu é azul como em qualquer ponta de mundo ao meio dia; como em Londres, Paris, Bagdá, Bangladesh ou Tókio. Entretanto, naquele amontoado de blocos à vista certamente residiriam fantasmas meus presos entre os espaços vazios da argila.

Céu, mar, barcos e vidas não seriam radiografias da minha alma; seriam parte dela e por isso é inútil pensar que a mera descrição das coisas revele a alma de quem quer as recorde desta maneira. O relógio sem pulseiras enterrado sob o piso da sala, antes da sobreposição das pedras e cimento, já não funciona mais.

Esta percepção do passado poderia fazer a memória amar loucamente certo tipo de materialismo vil. Na areia, no barro, nos barcos e nos coqueiros da Gamboa, a lembrança da vida se perderia em profusões de ressentimentos obscuros, como espelhos turvos pelo gastar do tempo... como pequenas ondas a confundir as cores do céu refletidas no mar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Roda.


Tem aquela história da cobra e da picada, do feitiço e do feiticeiro. Adapte-se aos novos tempos é a máxima que o movimento frenético da roda do progresso balbucia como mantra aos ouvidos. Começam, entretanto, a aparecer sinais – virtuais que sejam – a nos permitir interpretar que adaptar-se aos novos tempos pode significar justa e paradoxalmente o desprezo pela roda.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Sobre...

Eu não acredito na existência de ... simplesmente porque entendo que se existe uma harmonia que dá sentido ao universo, não vejo porque ela teria vontade própria como um ser humano qualquer; não é meu pai, nem filho do pai, tampouco espírito santo. Ou não. Gosto de Jesus, mas não gosto de Cristo. Gosto de Jesus vivo, não gosto de Jesus morto. Respeito quem resolve suportar o peso de estar num lugar que não sabemos direito o que é, nem porquê, por meio da fé que redime a culpa por estarmos vivos; ocorre que não me convém resolver as coisas dessa forma porque não pretendo ter respostas para o que sei não haver resposta. Isso me faz, hoje, viver - quase - sem culpa. Gosto de movimento, gosto de pensar amanhã diferentemente do que penso hoje. Gosto de sentir o fluxo do mistério da vida me sacolejando todas as manhãs. Gosto de ser e estar.

domingo, 16 de agosto de 2009

Gota de resignação.

Chega de verdade, chega de querer parar o tempo, chega de oceano de revolta. Vivo a simplicidade das coisas. O mundo que cheiro, degusto e sinto. Chega de universo se movendo, viva o movimento do universo. Descanso em paz. Não encontro respostas para grandes perguntas e fico satisfeito. Amanhã tudo muda novamente e o turbilhão da vida prossegue seu curso tortuoso, quase aleatório, quase manuseado pela projeção de nós. Não sou nada em meio à tamanha imensidão. Sou um ponto se movendo em uma imagem de satélite, entre tantos outros pontos que, sem saber, constroem satélites que nos vêem e nada dizem sobre nós. Assim é a vida: besta e sem sentido. Para respirar é preciso, quando em vez, viver com toda intensidade essa falta de sentido. Inspira, respira. (...) Não é bom?

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Caos II

Feira de Santana às dezoito horas em muito se assemelha a uma metrópole. Ouvindo Arrigo Barnabé no mp3 player, aguardando transporte num ponto de ônibus lotado, senti alguma pulsão transbordada em faróis, ruídos de motores, anúncios luminosos e monóxidos de carbonos expelidos nos ares da Feira.

Arrigo Barnabé é daqueles que fizeram da sua arte uma obra póstuma. A violência do som dodecafônico não somente está em perfeita sintonia com o caos metropolitano como aponta para o que será ele no futuro, quando não mais conseguirmos respirar sem sufocar quem estiver à nossa volta. A música de Arrigo nos dá a esperança mórbida de que quando estivermos próximos do sufocamento tenhamos talvez, numa reversão abrupta de sentidos, um orgasmo total.

A sensação dentro do ônibus, no entanto, era de não mais caber no mundo. Como se fosse necessário me expelir, saltar pela janela. Fora da música, o caos era um terror. Algo em torno de trezentas pessoas se apertavam dentro daquela lataria verde. Meus pés mal encontravam lugar ao chão. A moça da frente achou que eu estava me esfregando nela de propósito. Depois ela percebeu que ao invés de um sacana tarado eu era ali nada mais que seu cúmplice. Nada que sugerisse orgasmo, nada de reversão abrupta de sentidos. Sufocamento apenas.

Mas havia muita cumplicidade naquele esfregar involuntário de corpos. Na expressão dos rostos uma revolta silenciosa, mas muito presente e muito sentida. Em algum momento balbuciei quase involutariamente a palavra caos [como rosebud] e três pessoas me olharam concordando, quase respondendo alguma coisa. Será preciso soltar crocodilos dentro dos ônibus urbanos de Feira para que a cidade olhe em volta e comece a se importar um pouco mais consigo mesma?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Queremos saber.

Um pensamento circular tem assombrado as minhas manhãs. Há muito tempo eu já pensava em comentar algo sobre a escrita em ambientes virtuais. A ‘www’ é um buraco negro que suga a nossa vida como um turbilhão. A internet é anti-matéria em estado puro.

Escrevo coisas que só são importantes porque estão escritas, mais nada. Pedaços de mim estão espalhados aqui por toda parte. Ali, naquele canto direito (abaixo), por exemplo, onde fica o arquivo do blog, no mês de junho constam onze postagens. Os títulos já não aparecem mais. É como um baú que se fechou com antigas cartas nunca enviadas para ex-paixões do colégio no interior. Eu trouxe o mundo para esse baú. Portanto, também sou responsável por fazer da internet a maior lixeira de vida que os seres humanos foram capazes de inventar.

Imagine alguém, pode ser eu mesmo, revisitando arquivos do mês de junho de dois mil e nove, no futuro em que talvez tenhamos no mundo virtual a nossa vida principal, e lendo lá coisas sobre meu quarto tal como ele é hoje; sobre a rodoviária de euclides da cunha; sobre a janela do ônibus a caminho de monte santo. Não existe critério algum para a escolha entre escrever sobre um café amargo que tomei domingo a noite ou as cenas inacreditáveis de Lawrence de Arábia, que reassisti ontem.

Lixo. Minha vida aqui se soma à essa imensa lixeira virtual. E agora, com o twitter, já posso jogar no lixo pensamentos fortuitos ainda mais fragmentados do que os deste blog. No futuro, quando quiser saber quem fui agora, poderei revirar o lixo e tentar encontrar nestes fragmentos os vestígios desse passado perdido no tempo virtual. Chico Buarque diria que decifrar os ecos destas antigas palavras é tarefa vã. O eu que me lê no futuro, entretanto, é que terá que preencher os vazios com mitos do que fui. E então, já não saberei quem sou, mas o que acho que fui.

Hoje pela manhã pensei que o google certamente vai falir e talvez esse blog seja extinto para sempre. Eu não tenho banco de arquivos no word. Senti frio. Será isso mesmo? Melhor não deixar pistas? (...) Mas, talvez, por puro deleite de abrir uma brecha no tempo para falar comigo noutros planos, eu faça um backup do conteúdo do provocações. Ou seria melhor imprimir?