quarta-feira, 29 de julho de 2009

Contexto.

a Franz Kafka
a Walter Benjamim
a Jorge Luis Borges

Uma praça, uma igreja, palavras interrompidas por goles de café doce e fraco. Não me recordo do nome do pequeno povoado. Na calçada, uma mulher solteira de meia idade, uma senhora já tanto idosa e com dores agudas na coluna, e o velho. Conversa de fim de tarde.

Sobre o que se conversava pouco importava para o velho. Importa mesmo é que ele já não servia para nada; que velho só serve para se escorar um no outro; que velho quando tomba tem mesmo é que morrer; que essa coisa de céu e inferno é coisa inventada para ganharem dinheiro de velho por aqui; que a morte é uma grande piada divina. E se ria, encostado que já estava na casa dos noventa anos.
***

A reinvenção da morte não poderia ser mais natural na sua condição. Já não tem com quem e para quem contar. Só seus velhos companheiros. Mas de que adianta contar coisa para velhos, tão inúteis quanto ele? Os velhos, de fato, parecem já não servir para nada. Ninguém lhes dá ouvidos. Não se aprende mais a viver ouvindo como, quando moleques, capturaram sua primeira rês perdida pelas caatingas do São Francisco. Não existem mais reses perdidas no sertão do São Francisco. Só pessoas. Por alguma razão, que me parece ainda obscura, um estouro de gentes que seguiam juntas pela estrada foi seguido de um refúgio que parece sem volta.

Que o mundo seja mesmo assim, governado por seqüências de acasos entre uma escolha e outra, ou entre uma imposição e outra, não cabe aqui discorrer. A errância pelo mundo também ensina e certamente substituirá as longas noites de lamparinas e estórias. Da mesma forma, os velhos procurarão outro destino para tantas vivências e sabedorias acumuladas. Quem sabe, vez em quando, não apareça um menino vindo de terras longínquas, capaz de escutar com atenção e deslumbre as peripécias de aventuras quase esquecidas? Quando não, ao menos a morte deixa de ser uma companheira sombria e já lhes parece um destino mais natural do que uma vida sem sentido.

***

Consideremos agora o texto acima como independente desta parte que agora escrevo. Hesitei muito antes de postá-lo como está. Resolvi a questão no instante em que pensei e decidi escrever esta parte explicando o porquê de ter publicado dessa maneira.

O fato é que a primeira parte, já que o texto é dividido, não sem razão, por três asteriscos ladeados e centralizados, é uma narração que basta em si mesma; a segunda parte é apenas um comentário – ou uma crítica, se eu me julgar capaz de ser pretensioso. Portanto, construí uma narrativa, e junto a ela anexei a minha crítica à essa mesma narrativa. Pensei o porquê de ter feito isso. Pensei. Não seria melhor que cada leitor interpretasse o texto à sua maneira e disso tirasse as suas próprias conclusões? Porque eu iria empobrecer tão deliberadamente um texto tão bem acabado em dois mínimos parágrafos?

Decidi publicá-lo, ainda assim, da forma como foi. Pensei que eu não quero apenas sistematizar leituras das coisas e jogá-las no mundo como se eu não existisse. Um leitor mais ortodoxo poderia dizer: ora, apareça no texto! Se desejar ser sutil, o faça, mas esteja lá. Diga que você estava sentado numa cadeira assistindo aquela cena e sentido cansaço e calor, e que os braços doíam de tanto segurar a direção da moto naquele areião sem fim.

Poderia fazer isso. Mas não quis fazer. Simplesmente optei por descrever a cena. Depois, senti falta de mim ali, mas não quis alterar algo que nasceu com uma certa naturalidade. Este conflito me levou a escrever a crítica que segue o texto. Eu preciso estar ali, a minha opinião sobre as coisas precisam acompanhar a descrição crua das coisas. Isso é muito perceptível em vários pósts deste provocações.

Sei que há um risco enorme que eu reduza as possibilidades interpretativas dos leitores e com isso, como já dito, meu texto empobreça de sentido. É um risco. Mas confio em meus leitores. Já tive evidências aqui que as pessoas podem pensar ao lado e para além do que eu penso dizer. Enfim. Mas façam o exercício de ler a primeira parte – a narrativa – de forma independente da minha interpretação. Quem sabe os navegantes leitores não sintam com maior grandeza e naturalidade o que tentei dizer com outras palavras, de sentido tão limitado, na segunda parte.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Cardápio, por favor.

Por Juliana Ribeiro.

[http://www.flickr.com/photos/juribeir0/]

Um trecho importante foi omitido do diário. Vale lembrar que após retornarmos exaustos, fomos curtir um pouco a night de Canudos.

Muito movimento na praça, umas três pizzarias abertas e mais uns dois botecos com sinuca (claro!). No entanto, optamos por uma churrascaria lá na entrada da cidade... a pizza poderia ser muito indigesta à noite. (que coisa!)

A churrascaria tinha um movimento, umas duas mesas de gente bebendo e conversando do lado de fora, uma sinuca com uns dois jogadores do lado de dentro e um som agradável ao estilo aviões do forró.

Logo chegou uma moça pra nos atender. Naturalmente pedimos uma cerveja e... “o cardápio porfavor”. Cardápio? Ela nos olhou com a cara de quem não sabia como agir diante de duas pessoas tão estranhas. “peraê”. Voltou. “É que... Eu vou chamar ali o dono”.

Veio um rapaz que não era o dono: “boa noite, vocês querem pedir?”. E nós já desconcertados por ter pedido o tal cardápio, não cometemos o mesmo erro:

– Err... A gente queria saber assim o que tem.

Ele disse que tinha “bode... (_____) calabresa... (_____) frango...”

Fiquei sem saber se devia perguntar:

– E carne de boi, tem?

– Ah sim, tem carne de boi também. Coração? Coração não tem não.

– Hum, certo. (pausa) Eee... como as pessoas costumam pedir aqui?

Pensei nas outras mesas em volta. Ele olhou com a mesma cara estranha e um riso amarelo acanhado. Devia estar rindo da gente.

– Hum... Eu vou chamar ali o dono que ele explica.

Depois de conversar com o dono entendemos que de fato não existe um cardápio ou um preço pra alguma coisa. Ele, acho que já avisado, nos tratou como verdadeiros turistas estranhos numa terra que turista não é um bicho tão comum quanto bode! Disse que era tudo muito bom, gostoso e que a gente dava o preço. Explicamos o que queríamos. Ele falou que entre 10 e 20 reais ele fazia lá a quantidade. Ele trouxe o que achou que valia 15 reais... E foi muita carne!


Ainda ganhamos de entrada pititingas do açude Cocorrobó com gosto rançoso e aparência de que tinham acabado de ser pescadas e jogadas no óleo com aqueles olhinhos esbugalhados. Só com muito limão em cima... E graças a tudo isso estava uma delícia!


Continuo sem entender como aquilo ali funciona. Ajudou um pouco quando compreendi depois que nas duas mesas cheias estavam sentados os donos. De uma mesa saiu o dono que nos atendeu, e da outra veio a esposa dele me perguntar se estava gostoso com o sorriso improvisado das baianas de acarajé do Pelourinho em Salvador.


Sem querer ferir seu orgulho sertanejo... Fomos turistas em Canudos!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Viração.

Estive anteontem no bar quatro estações. Como todas as segundas feiras, dia para aproveitar a bohemia dobrada, alguém tinha que bater lá em casa para me convidar para o desfrute da promoção. Duas senhoritas - ao que me consta. Uma delas conheci por caminhos diferentes que se cruzaram em alguma encruzilhada dessas comuns numa cidade como feira de santana. A outra conheci por essas coisas do acaso mesmo. Ela é amiga da primeira. Entretanto, sobreviveu ao final já sem as sombras dessa adjetivação.

Sair de casa pode ser uma aventura imprevisível. Ainda mais quando não planejamos, ou seja, quando estamos despreparados. Ontem o mundo me fez algumas supresas, preparou alguns acasos que mais pareciam coincidências, e também me pregou algumas peças. Um senhor já demasiadamente embebido de álcool, ressucitado na sequência do beber e cair, veio à minha mesa por à prova algo como a estrutura das minhas pensações. Deixei bem claro que não preciso de estruturas para pensar. Gosto de pensar com elas, mas dispenso-as quando entendo necessário. Mas, enfim, eu diria que era um grande desafiante. O mundo, entretanto, parece me subestimar. Achar que eu não saberia lidar com aquela situação foi um derrapão grave da coincidência do acaso. Me provocou, mas não me convenceu. Mas gostei, afinal, do resultado da prova.

Como eu estava sentado em frente às portas dos banheiros, era comum que o fluxo do bar confluísse naquela direção. Isso fez com que pessoas que bebiam lá fora me vissem lá dentro do bar. Encontrei uma pessoa com a qual me deparo muito raramente. Mas o curioso, disse a ela depois de um papo ligeiro, é que parece que sempre estamos pensando a mesma coisa, na sequência. Disse que o acaso, vez em quando, fazia com que ela e eu, acredito que muito apegados às nosssas casas, saíssemos coincidentemente em direção ao mesmo local, no mesmo horário.

Em outra rara oportunidade semelhante, disse a ela da minha angústia com os primeiros minutos seguintes ao momento em que desperto. Nada do que havia pensado, calculado, planejado com tanta precisão no dia anterior fazia mais sentido naquele átimo de tempo. Tudo se derretia como gelo no deserto. Ela sentia a mesma coisa e rimos à bèça. Mas eu simplesmente não sabia como lidar com aquilo. Foi que a partir de certo tempo, decidi simplesmente não pensar nessa angústia amanhecida. Decretei à Razão, ilustre soberana de mim: é proibido pensar sobre quaisquer coisas minhas nos primeiros minutos após o acordar.

Pobre razão. Já havia perdido grande parte de mim para os sonhos que eu acabava de sonhar, tão logo a luz começava a entrar no quarto. Acho que esse tormento matinal é o tufão dos meus sonhos me soprando aos ouvidos... 'cuidado com a certeza! cuidado com as convicções! cuidado com os dogmas! cuidado com as religiões!'.

A razão, por enquanto, sempre me toma de volta - isso é fato. Mas já não reina absoluta. Disputa cada palmo de mim com o irracional, com o ilógico, com o incorreto. Já há algum tempo assisto essa luta dentro de mim. Hora eu torço para um; outra eu cruzo os dedos para outro. Sinceramente, gostaria que um dia eles se entendessem e parassem de brigar. Acho um pouco difícil. Mas não desgosto em ver os dois brigando como crianças malcriadas, rebeldes. Como um pai que vê na luta entre os filhos um preparo para ambos enfrentarem o mau tempo do mundo, assisto a tudo com tranquila calma. Decidi, entretanto, já não aguardar um resultado final. Estou dizendo as coisas pra ver no que é que dá.

domingo, 19 de julho de 2009

Diário de Bordo.

Canudos, 18 de julho de 2009. Acordamos, Juliana e eu, prontos para encarar duas comunidades na zona rural de Canudos. Eu, para apresentar o projeto de assessoria em que trabalho, ela, para captar momentos numa Cannon da qual agora não me recordo de nenhuma especificação técnica. Nos ofereceram uma moto para chegarmos até lá. Uma Honda Tornado, 250 cilindradas, 4 válvulas. Quando acelerei pela primeira vez essa moto, pensei: fudeu! eu pilotando esse burro bravo quando estou acostumado às populares 125/150 cilindradas, que são mansas como mulas velhas.

De fato, quando fomos ao parque estadual de canudos, antes da reunião [marcada para 10 da manhã], com o objetivo de me acostumar com aquela coisa, não deu outra: no entorno do 'alto da favela', fui fazer um retorno e ela acelerou tão forte que fomos ao chão sem que eu nada pudesse fazer. Além de muito pó na calça, algumas escoriações no cotovelo e um pisca-pisca quebrado, nada houve demais. Juliana também não chegou a se machucar seriamente.

Chegamos na comunidade da Rocinha, à beira do açude Cocorrobó [que inundou a velha canudos]. Gente simpática e acolhedora, como quase sempre. São pescadores. Criam um bodinho também, mas se reconhecem como pescadores. Após a reunião almoçamos na casa de seu Luís [com aviões do forró e pisadinha como fundo musical]. Almoço simples, segundo eles. Mas comemos dois tipos de carne e eles, além de prepararem uma saladinha, tiraram o pó daqueles pratos de porcelana que ficam guardados em armários para nos servir.

Pela tarde fomos à comunidade do Angico/Barriguda. Afora alguns excessos do seu Manoel Vermelho, que tinha tomado umas antes da reunião, tudo correu bem. Na verdade, eu achava até divertido seu Manoel falar sem parar e usar quase todo o tempo para dizer que gostava mesmo era de falar. No final, vieram aqueles abraços sinceros que me fazem esquecer qualquer cansaço de fim de dia. No embalo, fomos ainda para um festival de sanfoneiros que rolava em Canudos Velha, do outro lado do açude. O clima tava bom, mas não ficamos muito. As dores da queda e o cansaço fizeram com que voltássemos para Canudos [sede] sem dançar um forró sequer.

***

Canudos, 19 de julho de 2009. Juliana teria que retornar à Salvador. A comunidade que eu iria, o Bom Jardim, ficava a 100 km de distância da sede de Canudos. Vocês leram bem: 100 km. Mas não é só. Destes, 15 km eram de areia. Funda. Precisava de um guia. Como estava de moto, infelizmente minha linda fotógrafa teria que retornar.

Todo mundo que me falava da estrada do Bom Jardim colocava na boca aquele sorrizinho maldoso que dizia: voce vai cair na areia; voce não vai chegar lá; voce é um pó de arroz da cidade e não está acostumado com isso aqui. Eu já tinha caído no dia anterior e chegar ileso em Bom Jardim era uma questão de honra. Na saída, às oito da manhã, seu Marquinho, meu guia, já disse: eles deveriam ter arrumado um motoqueiro pra te levar. Fiquei meio puto. Na verdade, bastante.

Resolvi correr só para que ele ficasse com um pouco de medo. Eu já havia domado aquela moto brava. Tinha ela em minhas mãos e um vento frio gelando o nariz. Paramos no primeiro povoado e tomamos café na casa de uns conhecidos de seu Marquinho. Quando disse que iria a Bom Jardim, mais caras se movimentavam como se quisessem dizer: Bom Jardim é Barril!

Eu já pensava que cair seria mesmo um desastre. Seria dar razão a todo mundo. Seria ter que pensar depois que em Canudos não se falaria de outra coisa: 'Eu não disse que ele ia cair?'. Fui com mais coragem que cara. Quando apareceram os primeiros areiões, fiquei meio nervoso, mas consegui me concentrar. Aliás, agora entendo o papel da 'concentração' para quem é piloto. Não dá para se distrair. Quando parei para pensar que Rubinho Barrichello deve sofrer dislexia, quase caí na areia. O pé no chão me salvou. Com mais uma dessa e uma escapada numa curva fechada, cheguei ileso a Bom Jardim. É uma comunidade linda. Tudo verde. Quase tudo. Tinha uma porção de mato com flores roxas que formavam com o verde algo como aquelas combinações de cores complementares de Van Gogh.

A reunião foi tranquila no início, mas no final perdi o controle e resolvi encerrar logo. Seria melhor captar outras impressões nas entrelinhas dos diálogos paralelos que continuar a reunião sem a diretriz que me levava até lá. Almocei na casa de um vaqueiro mui digno. Um banquete. Palitei um pouco os dentes e, antes que pensasse como seria bom cochilar na rede da varanda, gritei seu Marquinho para que tomássemos o caminho de volta. No retorno, nenhum derrapão na areia. Cheguei em Canudos às 18:30, cansado, mas sem um arranhão sequer no orgulho de quase sertanejo que fui.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Conversa. (Lado A)

Não sou eu o único autor destas pensações. Pretendo colocar aqui o meu ponto de vista sobre um papo de sofá com Davi Lara, ontem a noite, na sala da república dialógica lá de casa. Nem seria preciso escrever que são fragmentos apenas, mas prefiro ser redundante que incompreendido.

Dizia a Davi Lara que li outro dia na internet que existe uma espécie de papoula que só nasce em uma pequena região do norte da Índia. É conhecida como a “papoula negra”. A informação era de que ela seria capaz fazer com que pessoas conversassem por dias seguidos sobre minimalismos inacreditáveis, porque seu princípio ativo estimularia uma expansão absurda do nível de entendimento do entendimento do outro.

Dizia ainda que gosto da internet porque ela era uma saída razoável para que certas conversas não se percam em ecos como as nossas palavras naquela sala, naquele momento, que entravam pelas paredes, em cada fresta do piso, debaixo do sofá onde certamente haveria uma teia de aranha, na qual estaria preso um daqueles casulos que mais parecem uma pequena bola de veludo branco, ou uma visão ao longe de uma imensa plantação de algodão, que ao ser aproximada, nos mostraria que ali havia trabalho no movimento das mãos dos catadores do algodão, que posteriormente iria para uma usina se transformar pela ação de outras tantas mãos em movimento em, por exemplo, roupas como a que estávamos vestidos.

O trabalho é mesmo algo fascinante. Conversando sobre o pensamento materialista [um paradoxo], disse que eu me encontrava hoje numa zona indistinta entre ser um materialista inconformado ou um metafísico mal resolvido, ora pendendo a um, ora a outro. Estou num ponto em que esses extremos se tocam, num canto em que nenhum dos dois consegue me convencer satisfatoriamente de nada. Tenho desconfiado de tudo, afinal. Mas isso não me joga na vala comum dos relativistas. Também não me satisfaço com eles.

Concordamos, Davi Lara e eu, que o materialismo, de certa forma, precisa de rigidez em sua forma de pensar e, principalmente, de explicar o mundo. Essa rigidez nem ele nem eu gostamos. Ele muito menos que eu, certamente. A rigidez do pensamento materialista nos coloca num esquema que parece sufocar o livre pensar, porque se existe rigidez, existem também limites para pensar a própria estrutura do pensamento. Os materialistas [inteligentes] costumam direcionar essa contingência para a dialética que Marx salvou em Hegel. Mas quando a própria dialética hegeliana assume esse aspecto de dogma, os limites mais uma vez batem à porta ao pensamento materialista.

Disse a Davi Lara que gosto da forma de pensar de Hannah Arendt, filósofa alemã considerada liberal pela esquerda marxista, e de esquerda, pelos liberais. Arendt dialoga, entre outros, com o próprio Marx, com Heidegger, seu orientador e amante, Santo Agostinho e Walter Benjamin. Como falávamos de materialismo, comentei um pouco do diálogo de Arendt com Marx, que acho muito interessante.

Pedindo licença para discordar de Marx, respeitosa da grandeza de sua teoria e receosa de ser jogada na vala comum dos críticos oportunistas da obra do pensador alemão, Arendt entende que ele, ao colocar o trabalho como única ação que representa a totalidade da relação do ser humano com o mundo, parece não ter ‘previsto’ certas conseqüências nefastas desta absolutização.

Ainda não li ainda A Condição Humana, obra em que ela trata deste tema com profundidade. Mas me atrevo a entender o que Arendt propõe. Acredito que ela chegou a essa conclusão colocando a nossa atual sociedade de consumo como resultado desta centralidade no trabalho. Não me recordo bem, mas acho que ela faz explicitamente essa relação. Devo estar escrevendo sobre algo que li. Enfim. Essa conclusão me parece muito pertinente. Mas antes de adentrar nela, vamos antes ao que concordo com Marx.

O trabalho é quem produz a riqueza no mundo, a partir da intervenção qualificada que o homem nele faz; a organização deste trabalho, no capitalismo, é controlada pelo que ele chama de “capital”, representado pela força das ‘leis de mercado’, da qual, inclusive, são escravos os próprios sujeitos capitalistas. O que Marx parecia sugerir, é que a absolutização do mundo do trabalho acabaria colocando o controle dele nas mãos dos seus sujeitos, os trabalhadores.

Foi um risco, acho que na opinião de Hannah Arendt e na minha. A absolutização do trabalho que Marx propunha desprezava tanto o pensamento independente das relações estabelecidas com o mundo, quanto o resultado do exercício do pensamento em relação à práxis: a ação humana menos trabalho. Entendo que Arendt quis dizer que o trabalho era apenas uma forma de relação com o mundo, ou seja, não era a única. Esse certo “desprezo” pelo pensamento independente (chamado simplesmente de “pensamento burguês” por ele) fez com que a teoria materialista de Marx se fechasse num ciclo em que a própria dialética estaria comprometida pela necessidade de rigidez do pensamento.

O pensamento independente seria uma terceira forma de conceber a relação entre ser humano e natureza, além do trabalho – mas não sem ele. Seria a partir desse pensamento que o ser humano deveria elaborar as suas intervenções mais relevantes no mundo, colocando-as em prática através da “ação”.

Com o mundo na palma da mão, tentei mostrar a Davi Lara as minhas conclusões: a potencialidade do trabalho humano é tão avassaladora que as necessidades mais básicas de toda a humanidade já teriam sido supridas desde meados do século XX, caso a riqueza produzida não fosse controlada pelas leis de mercado, que necessitam da desigualdade para seguir hegemônicas; ocorre que a tecnologia multiplicou ainda mais essa capacidade do trabalho, e fez com que produzíssemos muito mais do que precisávamos para manter uma vida confortável; fez com que o mercado entendesse necessária a existência de um exército de reserva para mão de obra; afinal, fez com que o consumo explodisse para dar conta da nossa própria capacidade de produção.

Arendt lembra que com a sobrevalorização do trabalho e da economia, que ocasionou a perda da nossa capacidade de pensar politicamente o mundo, tudo o que sobrou como momento de lazer para nós foi consumir o que produzimos. Até a arte, como diria Adorno, precisou adentrar na onda gigante da lógica cultural do consumismo. E já escrevi aqui sobre as conseqüências de colocar o consumo como forma dominante de lidar com o mundo. Agora o consumo, uma criação, um efeito colateral da sociedade do trabalho, avança sobre a criadora e ameaça, nestas décadas pós-modernas, lançar as bases para um mundo sem trabalho.

Eu, sinceramente, entendo que seria uma merda completa trocar o trabalho pelo consumo. Entendo o tabalho como uma forma de ser livre, e não de ser prisioneiro da sua lógica. Acredito que o trabalho, se bem entendido, pode nos libertar da necessidade. Já o consumo, em sentido inverso, nos aprisiona no reino da necessidade. Milton Santos é quem nos chama atenção para o fato de que hoje o consumo é quem representa o verdadeiro fundamentalismo.

Enfim. Davi e eu concordamos, depois de pensar um pouco, que deveríamos encomendar uma remessa de papoula negra do norte da Índia para a república lá de casa. Sem ela, com o tempo, certamente as nossas conversas serão muito monótonas. Neste mundo globalizado, nossa república não pode estar distante do comércio a nível mundial. Entretanto, como nós ainda nos recusamos a operar num mercado internacional que tem o dólar como moeda padrão, sugiro que esperemos passar essa onda de Estados Unidos no mundo para fazer a encomenda aos nossos amigos indianos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Chuva em Canabrava.


Sempre que chego a Salvador desperto antes da brasilgás e vejo aquelas casas suburbanas dependuradas em morros. Não sei bem o que representam em mim. Outro dia passava por ali ouvindo 'gente humilde' (de chico e jobim) no mp3 e quase chorei. Mas elas são muito menos que isso. Talvez uma imagem apenas. Eu, que vivo entre a Pituba, Rio Vermelho-Barra, MAM e Teatro Castro Alves, as vejo como um anexo obscuro de uma cidade que parece bastar a si mesma nesse roteiro que descrevi. Nós passamos por ali, e de repente elas desaparecem e abrem espaço para a grandiosa capital da Av. ACM, Iguatemi e Igreja Universal.


As pessoas ficam lá.


Sempre que penso num soteropolitano típico localizo-o entre os freqüentadores do jazz do MAM e os tomadores de tequila dos barzinhos de plástico da Pituba. Mas que maioria é aquela que mora pelos calabares, pelos subúrbios ferroviários?

Hoje, a caminho da paralela, tomei uma rota de fuga dos engarrafamentos por dentro daquele enigma. É enorme. Aquilo que da BR 324 parece um cenário, tem um recheio de gentes vivendo e mais casas de blocos à mostra.


Becos, vielas, escadarias, bananeiras.


Bares improvisados em salas de estar, cadeiras brancas e cerveja no balcão. Um jogo de baralho, um grito estridente, muitas tv’s ligadas, carros na contramão. Sempre desconfiei disso, mas estar ali é muito diferente. Como deve ser olhar a chuva dali de dentro? Como deve ser não sair de casa sem enfiar o pé na lama ou correr o risco de escorregar beco abaixo? Como deve ser ter um quarto com a janela para um barranco prestes a desabar? Como deve ser a felicidade ali?

Passava pelo lado de dentro do vidro do carro e pensava se havia na UFBA algum grupo de pesquisa que elaborava um projeto de intervenção ali. Eu duvidei porque acho que o pessoal da Ufba sempre tem muito mais o que fazer. A Salvador que vivo parece ser mais feliz ignorando aquelas outras cidades tão Salvadores quanto.

Eu no MAM,
eu na Concha,
eu no Mar.

Uma tarde em Itapoã,
um pôr do sol no Farol
Ferreira Gullar

O poeta,
por certo, indagaria:
quantas tardes há na Cidade da Bahia?

Terno.


Shopping Boulevard, 16:30h. Eu, frente a um espelho, vestido num terno preto. Tal e qual ‘o herói’ de C. Veloso, [ouçam a última faixa do álbum ‘Cê’] vi em mim a imagem de quem cria que sempre olharia com desdém total. Um homem cordial. Encerro o curso de direito ainda sem saber se sou um otário de terno preto ou um ‘herói’ canoeiro remando contra a correnteza. Ou, quem sabe, uma imagética e cruel síntese entre as duas coisas.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Rebote.


Se havia uma predisposição em retornar ao tema do post ‘São João’, não poderia perder o embalo de um bom rebote da provocação lançada. Ciente, entretanto, da vastidão do tema e da impossibilidade de esgotá-lo naquela oportunidade ou mesmo aqui, como um advogado esperto que coloca letrinhas miúdas em rodapés de contratos, alertei que retornaria àquela temática por haver ‘muito caroço no angu’. A bela análise de discurso – que na internet chamamos de ‘comentário’ – elaborada por Lorena comprova isso. [confiram lá no post referido antes de prosseguirem a leitura]

Uma primeira questão que podemos nos debruçar, na linha proposta pelo comentário, é quem influencia quem nesse jogo entre o cotidiano e a captura dele pela arte. [sugerir que ‘aviões do forró’ é arte é uma grande provocação] Essa me parece ser uma daquelas questões que tem como resultado após dias, meses, anos, décadas e séculos de profundos debates estético-filosóficos, a chegada ao enigma fundamental da existência humana: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?

[aliás, essa coisa da negatividade constitutiva do ser, tão bem a cara do nosso tempo europeu, é filosofia pequena diante de tão grandioso mistério]

Deixemos de lado as divagações. Obviamente que não conseguirei aqui dar conta dessa primeira questão. Entretanto, como ela é fundamental para entender essa temática, posso então levar adiante a principal tarefa a que gosta de se dedicar o intelectual: falar sobre o que não sabe.

Eu compreendo essa mudança de paradigmas, que deixam obsoletas certas visões fantasiosas de mundo [como o mito do amor romântico], como reflexo dessa dissolução das identidades rurais e urbanas no interior. É uma mão dupla, aliás. É muito comum o jovem de classe média da cidade deixar, às vezes, o carro na garagem e montar cela em cavalos que passam batendo as ferraduras nos paralelepípedos. Aqui o fator cultural e simbólico talvez fale mais forte.

Já em relação ao jovem da zona rural, o contexto é um tanto mais perverso. [escrevo isso, mas não pretendo aqui pregar ninguém na cruz] Com a viabilização do transporte escolar, garantido pelos recursos do FUNDEF desde os idos de 1996, foi notável o avanço do projeto do governo brasileiro, desde efe agá cê, de ‘universalizar a educação’. Aliás, onde se lê governo brasileiro, leia-se Banco Mundial. Ocorre que essa gurizada foi jogada num sistema educacional completamente fora da sua realidade do campo. Na escola, eles certamente devem aprender coisas bem úteis, como, por exemplo, a usar a fórmula que converte graus celcius em farenheint.

Faço a ressalva, entretanto, que não gosto de pensar que os jovens da zona rural são obrigados a viver e morrer lá somente porque lá nasceram. Se eu pensasse dessa forma, deveria, por questão de coerência, retornar para o lugar em que nasci e passar a vida inteira cuidando de inventários e separações de casais. Gosto de pensar que para esses jovens basta o poder de escolha.

Nada que não dependa da vontade humana deve ficar engessado no tempo.

Ficar na roça hoje, significa estar em parcelas de terra cada vez menores [as famílias nordestinas, como sabemos todos, costumam ser grandes], sem perspectiva de melhora de vida, e ainda sem acesso ao orkut, twitter, msn e outras tantas modernidades que assim como nos faz dependentes, também o fazem com eles. Não significa que não existam oportunidades de vida na zona rural. Muitas vezes, basta um pequeno projeto que forneça, por exemplo, matrizes de cabras durante o período de cinco anos para que um jovem consiga montar um pequeno rebanho capaz de garantir seu sustento. Falta é apoio e vontade política mesmo.

As conseqüências dessa quase expulsão da roça para a cidade trazem consigo uma carga incalculável de frustrações acumuladas. Talvez daí que saia a faísca dessa explosão do ‘estar por cima’, como diz lorena. Não sei se entro aqui numa psicologia barata, mas acho que é um ímpeto do ser humano projetar suas frustrações na busca por outros desejos, talvez até mais fáceis de alcançar. Não é a tôa que a aparência tem sido cada vez mais valorizada por esses jovens. Os rapazes, por exemplo, estão agora numa de fazer moicano – e não há como não rir, às vezes, do resultado disso.

Nessa predominância do mundo das aparências, algo que no ‘mundo civilizado’ já é realidade há muito tempo, não é pra menos que manifestações das opressões nossas de cada dia se manifestem com mais força também. Neste sentido, as letras de aviões do forró retratam com alguma fidelidade a mutação que o machismo já existente sofreu na emergência das identidades ‘rurbanas’. Da mesma forma, o contrabaixo e a bateria (os sons graves) são marcantes em aviões do forró talvez pelo fetiche de instalar trios elétricos em porta-malas de carro. O grave explora melhor a qualidade do som automotivo, que se for bom mesmo não ‘chia’ com o volume muito alto. E parece óbvio que quem está por trás da banda compreende isso. Essa linguagem dialoga diretamente com esse novo mundo em que o status depende da conciliação entre a ‘fuleragem’ e a vida de trabalho, que por sua vez, garantirá o sustento da aparência de uma vida somente composta de prazeres. Sexo, cerveja e forró.


O fuleiro é um tipo de ‘malandro’ como o carioca, só que nascido no ceará.


Existe para o fuleiro, assim como para o malandro, um padrão de comportamento moral muito bem definido e, dentro dele, um correspondente feminino. É aquela que ‘faz valer na cama’ e que ‘se vinga’ da traição, como já disse lorena. Aliás, tem até uma letra que diz ‘mulher não trai / mulher se vinga / mulher cansou de ser iludida’. Elas adoram essa. Nessas elas se impõe e não duvidem, elas conseguem provocar a fuleragem [que não gosta nada de ser ‘traída’]. E assim como o malandro carioca, o fuleiro também enfrenta a ‘dureza’ de estar ‘por baixo’ com o ‘gole de cachaça’, fazendo graça de si mesmo. Mais uma vez, a linha que separa o estar ‘por baixo’ do estar ‘por cima’, quando se leva a vida no bar para ‘beber, cair e levantar’, também se move como se liquidificada estivesse.

[a comparação entre o malandro e o fuleiro é fruto de pensação coletiva da república lá de casa]

Citação.


"Eu tô na linha dos velhos pessimistas. Eu acho que a vida é um minuto. O ser humano, completamente desprezado, nasce e morre. Então, o sujeito tem que olhar pro céu e sentir que é pequenino, que tem que ser modesto, que nada é importante. A vida é um sopro, um minuto. Então não há razão pra esse ódio todo."



Oscar Niemeyer

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Corredor.

Desta vez não deu. Fui obrigado a sentar no corredor do ônibus até muito além de Serrinha, aquela cidade da vaquejada. Pois bem. Sem grilos nem medos de ‘mim’, olhemos pra dentro, pois.


***


Na poltrona do outro lado do corredor, pouco a minha frente, estava aquele rapaz que não sei se chamo assim ou de senhor, já que ele possui idade para tanto. Ocorre que ele ostentava um visual de malhado de academia que lhe vestia de uma forma de aparentar severamente indefinida. A blusa branca colada no bíceps, marcas de acne na face, combinadas com um vozeirão à lá Francisco Alves, compunham um personagem insólito e complexo.


Quando começou a conversar com a cabeça que sobrava da poltrona em minha frente, fui impelido num golpe rápido da audição a prestar atenção. A cabeça aparentava ouvir sem muito entusiasmo, num quase silêncio. Como os músculos das nucas não se movem para formar expressões que nos auxiliam a interpretar certas reações, o interlocutor do senhor da academia permaneceu uma incógnita daquele meu ponto de vista. Ouvir, entretanto, é que foi bom.


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Minha ex-mulher. Uma ingrata, rapaz. [pausa] Ex-mulher, né não? Cê sabe como é. A menina tá se perdendo lá com ela. Oito anos, rapaz, precisa ver. Uma princesinha a menina. Agora ela fica levando a menina pra academia. Eu já disse a ela. Vou entrar lá e meter a porra nela e naquele escroto que ela tá se esfregando agora. Um monte de macho velho suando em cima da menina, rapaz? Se não tem com quem deixar, deixa com a minha mãe, né não? Com a vó, porra. Por ela não. Ela que fique lá se esfregando nos macho dela lá. Ali eu conheço. Agora botar a menina lá dentro? Né não? Eu vou no juiz. Vou. Né não? Tô me esfolando pra pagar a pensão da menina, rapaz. E ela lá... acha que dá exemplo. Isso lá é bom exemplo? Ela se acha a esperta. Ela fez faculdade, sabe? Pensava que eu era otário. Ela se fudeu comigo. Pensou que porque fez faculdade podia me fuder. Ela tira uma grana naquela academia e queria me esfolar na pensão, rapaz. E eu só posso ver a menina lá na academia. Se um peso daquele cai na cabeça da menina eu trucido aquela vaca.


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Vagabundo. Filho da puta atrasou a pensão de novo. [aumenta a velocidade da esteira] Eu que sou burra. Existe camisinha pra quê, idiota? Parecia uma adolescente com aquele troglodita. Mas Mimi não tem culpa do pai que tem. Coitada de Mimi. Quanto mais longe ele estiver dela melhor. Ainda bem que ele caga de medo de Wando e quase não vem aqui. Nunca mais transo na esteira da academia.


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Minha mãe... Luiza da quarta série riu do meu sapato hoje na frente das meninas e elas riram muito de mim. Estava todo arranhado, minha mãe. EU – QUERO – OUTRO. Agora! Foi Janaína, aquela burra que arranhou meu sapato. Não sabe lavar nada. Bota ela pra fora! Agora!


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Eu quero é voltar pra Juazeiro.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A Feira.

Nos subterrâneos do comércio da Feira, adolescentes negros pobres morrem estatisticamente em razão de disparos de armas de fogo montados em motocicletas. Alguns bairros carregam Feira no nome e enumeram cardinalmente algumas das suas faces múltiplas. Uma Feira existe no limiar entre o abandono do passado e o fracasso de um projeto de futuro; nem boiadas, nem progresso. O CIS parece uma cidade fantasma. O CIS é tão alienígena em Feira de Santana quanto os viadutos de José Ronaldo. Quando passo no complexo viário da cidade nova penso estar em outra cidade. Ao sair do viaduto e novamente enxergar a velha Feira, compreendo que sem as suas intervenções alienígenas Feira não seria uma cidade tão intrigante.


Os viadutos são símbolos de um progresso que tomou algum atalho para longe do caminho da Feira. Fui informado que crianças levantam os braços e gritam - felizes e inocentes - ao passarem pelos viadutos. É como uma promessa cumprida. José Ronaldo gosta de promessas cumpridas. São, em verdade - e com o perdão do trocadilho, promessas compridas. Duvido que alguém consiga alcançar a vista na outra ponta. No entanto, não há sensação indescritível como quando no trânsito da Av. Getúlio Vargas deparamos, como num filme de David Lynch, com um viaduto sobre a Av. João Durval.


José Ronaldo é um gênio. Vai conseguir entrar para a história de Feira percebendo o quão simples parece a empreitada: venda ilusões a um preço caro de realidade. O viaduto da cidade nova está superfaturado de realidade; ele representa a ilusão de que Feira conseguiu chegar aonde queriam os seus cartolas dos anos cinqüenta. Como se numa remota e bela manhã, o progresso tivesse chegado em lombos de burros, numa imensa tropa de caboclos que, após cumprida a missão, retornaram para o seu universo bordado de couro e não mais empoeiraram com suas boiadas os móveis dos casarões da Senhor dos Passos. Daria um cordel: “A chegada do Progresso em Feira de Santana”.


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(Feira deveria respirar aliviada pelo fato do progresso ter se esquecido da cidade. O progresso chegou a Canudos em 1897, junto com as estratégias do Marechal Bittencourt. Se o progresso aqui tivesse chegado, não se ouviria ondas de AM nas manhãs brancas de obscuras neblinas; não haveria o odor das entranhas da cidade exalando do esgoto no Centro de Abastecimento; não haveria paralelepípedos na avenida Getúlio Vargas; não haveria vendedores de frutas no ponto de ônibus da praça da marisa; não haveria tanto emprego no ramo da pirataria; não haveria feiras que só são possíveis aqui, debaixo desse céu e em cima desse chão...)


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Uma legião de trovadores sub-urbanos cantam as feiras das madrugadas em violões loucos e desafinados. Feira é linda. É difícil decifrar essa esfinge. Os olhares estrangeiros aqui estão dentro de nós. É difícil encontrar um feirense nato de sessenta anos. Feira é uma jovem cidade feia. O ônibus do transporte coletivo de feira é verde para colorir o cinza da cidade. Há ônibus vermelho também. Verde e vermelho são as cores do fluminense e da bandeira de Feira. O Fluminense foi bi-campeão baiano em sessenta e três e sessenta e nove. De lá pra cá nunca ergueu a taça do baiano, ao que me consta. Mas é assim que eu gosto de Feira.


Desnortear-se aqui deveria ser um esporte nacional. O Brasil deveria, desde já, beber frustração dos olhos d’água de Feira e sentir uma possibilidade que o aguarda no futuro. Lagoas secas. Toda esperança será castigada. O Brasil pode se tornar uma imensa Feira de Santana. Eis a profecia. O Brasil vai ficar cinza como a fachada da igreja do senhor dos passos. Outros brasis emergirão; outros ventos noutras direções soprarão a brasa. E as Feiras de hoje, cinzas leves que serão, flutuarão nestes ventos até repousarem num velho móvel empoeirado de algum porão de museu da Cidade da Bahia.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Eu's.

Outro dia aceitei a provocação de um filósofo esloveno ao ler que a apreensão da filosofia oriental pelo ocidente havia sido um desastre total. Slavoj Zizek diz que enquanto no oriente o princípio básico da paz interior, mediada por meditações e técnicas de auto-conhecimento, servem ao objetivo final da destruição do próprio “eu”, no ocidente esse princípio foi assimilado justamente com objetivo oposto, ou seja, a reafirmação absoluta do “eu”. É evidente que essa apreensão do “eu” enquanto totalidade acaba tendo por conseqüência o negligenciamento e a irresponsabilidade com as coisas do mundo (já que o “eu” simplesmente sublima nele próprio o que é exterior). Mesmo que sem nenhum compromisso em cartório com Hegel ou com seus pupilos, entendo ser perigoso querer enterrar a dialética de forma tão vulgar.

Essa onda de “orientalismo”, que veio desaguar na avalanche de livros de auto-ajuda nas vitrines de livrarias de shoppings, coloca o ocidente diante de questões éticas que essa redução do mundo ao “eu” está muito longe de resolver.

Sem meias palavras, essa “filosofia” híbrida disseminada pelos manuais de auto-ajuda se encaixa como uma luva em uma sociedade na qual o consumo assume um papel cada vez mais central na vida das pessoas. Como diz Hannah Arendt, citada no meu Orkut, uma sociedade que estabelece como parâmetro de ação o ato de consumir jamais será capaz de cuidar do mundo simplesmente porque o fundamento último da atitude do consumo é destruir tudo o que toca. Neste sentido, as representações do Estado e dos “mercados”, atualmente, não querem nada mais do que o indicado por Foucault: corpos dóceis e manipuláveis. Dessa forma, resolvidos os problemas morais no âmbito exclusivo da interioridade do indivíduo, estando ele em paz com a consciência, não resta nada mais a fazer que matar o tempo shoppeando nos corredores do Iguatemi (perdão, Boulevard).

No sentido de concluir, academicamente falando, se percebo isso que chamei de "orientalismo" como um mergulho na mediocridade e no maniqueísmo, tampouco me satisfaço com a noção da diluição do “eu” numa cegueira coletiva. Se anulo a minha individualidade no mundo, a chance de me transformar num corpo dócil é tão latente quanto o inverso. Primeiro, porque entendo ser um crime lesa-humanidade alguém abrir mão da riqueza que é a particularidade do seu ponto de vista. Segundo, porque somente nos compreendendo em relação ao mundo (e isso só é possível se existe um “eu”) é que podemos definir os parâmetros da nossa ação dentro dele. E ponto.