domingo, 6 de dezembro de 2009

Réquiem nº I



Quis esquecer o celular na rodoviária
Suicidar-me em sites de relacionamento
Um blecaute eterno no mundo
Que secassem os poços de petróleo
Que despencassem as ações ordinárias da google

Quis mergulhar em tanques de gasolina
Bebericar estricninas
Fingir dor sentindo-a frio
Emaranhar-me em teias
nas vãs redes que o tempo tece e cria


Quis sentir dor publicada
Mentiras e tripas arrancadas
na comporta aberta do mundo
w.w.w. (...


Quero fechar a porta)
destrincar suave a janela
sentir a brisa eterna da noite
no porto quente - sem mar - da feira.


.

Réquiem nº II


Baratas são sujas. Seres marginais do mundo animal, não gostam de lugares limpos. Humanos sucedem-se no tempo para entupir-se de lixo até vazar pelas narinas. Não sem surpresa me encontrei diante deste dilema aristotélico. Poucos hão de conversar comigo sobre tais inutilidades. Raros. Ocorre que o acaso é um bom pregador de surpresas, e só consigo conviver com ele quando empenho-me em desafiá-lo. Afora meu caso com o acaso, o fato é que os poucos que mencionei em algum momento deste parágrafo existem, apesar de raros, e não sem acaso os e as vejo frequentemente.

Enquanto conversava na sala d’aqui de casa, momento em que os pessimismos habituais me perturbavam a compreensão do outro, distraí-me enquanto uma barata emergia no ralo do meu banheiro. Com a benção de alguns copos de cerveja, minha uretra anunciou os instantes últimos de torelância que antecedem a descarga da bexiga.

A luz, por sua vez, anunciou a presença da barata em meu banheiro. Percebendo a minha presença, dissimulou uma curiosidade que não me fez exterminá-la num primeiro momento. Aguardei meio que pacientemente o teatro da barata, com o instinto brilhando no papel protagonista. Suportei o seu comportamento infame e imaturo, típico do seres de baixo ou nenhum desenvolvimento intelectual, enquanto garantia que a última gota de necessidade fisiológica caísse naquele vaso sanitário fabricado pelas valorosas mãos que servem à família real inglesa. Guardei a minha arma violenta, já que não quereria simplesmente atacar a barata com um chinelo – emporcalharia ainda mais o meu banheiro.

Recorri a um conteúdo exterminador de possibilidades, o poderoso e eficiente baygon. Pensei borrifar sobre o teatro das possibilidades mil bombas atômicas, mas vi a humanidade exterminada antes que a terceira delas precisasse fazer efeito. Entre a segunda e a terceira explosão, uma agonia feroz incendiou os espíritos humanos vivos a tal que os fizeram decidir suicidar-se coletivamente no último segundo do último dia do ano de 2011.

Paradoxalmente, gosto do baygon porque seus efeitos permitem que a morte do espírito preceda a morte do corpo. [Ainda não li Crime e Castigo e me penitencio por isso] Não gostei, apelando à coerência, deste tempo e meio entre os dois anos cabalísticos, no qual os seres humanos foram abatidos de forma lenta, gradual e segura, por esta depressão tão profunda como o fundo da terra mais infinito. E no derradeiro dia, em trinta e um de dezembro do ano de dois mil onze, escrevo aos infiéis leitores do provocações. este meu último e breve adeus.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Imundo.

Ah, quanta merda! Quanta merda espiritual. Como fede minha alma. Como a insana se banha em esgotos transcendentais. Imunda alma do mundo. Banho meu corpo em manhãs quentes, mas não há água límpida que faça exalar este fedor. Como gostaria de viver entre ratos e baratas gentis. Meu sangue é lava de esgoto. Meu mundo exterior, mundo, é escandalosamente imundo e limpo. Senhoras educadas e mudas limpam o chão onde piso com formol. Quantas lágrimas eu tenho derramado por este odor queimando minhas narinas. Como quero uma boa sinusite. Poderia morar numa palafita, não ir à escola e empinar pipas em céus azuis sobre mares negros. Quando meu corpo apodrecer, quero ser lançado ao mar negro. Mas não em qualquer negro de qualquer lugar ou qualquer poesia... é à beira do mar negro e podre da triste bahia.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Favoritei-me.

* O gozo da língua são as palavras. *

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Tem[p]o.

Santana velava por nós. Fiquei quase quarenta minutos esperando o uefs direta naquele ponto. Não consegui sentir medo da Feira. Estouraram foguetes no céu e todo mundo na rua pensou que fossem tiros. Uma moça sentou depois e disse a outra, aos risos, que tinha sido roubada mais cedo. Logo mais, uma outra moça entrou num beco (claro) entre dois estacionamentos de joão borges. Duas senhoras no ponto disseram: 'olha lá, dalva. é por isso que acontecem as coisas.' Na conselheiro franco, um rapaz com um porrete na mão me pediu moedas. Disse que não queria roubar. Eu, que costumo avaliar caso a caso quando pedem grana na rua, acreditei nele. Dei-lhe cinqüenta centavos. Achei bonita sua forma de coação. O porrete ficou o tempo inteiro com o cano virado pra baixo. Sinal de que ele me respeitava. Era noite e não parei para perguntar o que ele faria com o dinheiro. Estava com pressa.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

entre-ato.

Minha voz é árida e não haveria de ser outra. Sou um filho do semi-deserto. Léguas tantas distante da casa mátria, tenho-o ainda por conselheiro rude e de fiel sabedoria. Corro tempo de pataca cruzada. Sigo pelo mundo entrecortando a prudência harmoniosa e passiva do silêncio com gritos subitamente tomados pelo fogo que arde o deserto. Grito como quem domina a fera; grito como quem é dominado pela fera. Silencio. Tempo, tempo, tempo. O airbus risca o céu vazado de estrelas e não cumprimenta seu joão. Sertanejos pela noite quase escura assistem televisão.

sábado, 12 de setembro de 2009

RAP Atemporal

[publicado em primeiríssima mão no... twitter]


[meta refrão em batida rap]
Tõuhnch / tchi tõuhnch tõuhnch tchi
Tõuhnch / tchi tõuhnch tõuhnch tchi
Tõuhnch / tchi tõuhnch tõuhnch tchi

A internet é vera
Cidade vasta do mundo
Cardinal amontoado
de vaga vida bundo

[leia-se como o maracanã gritando “ei, galvão”, vai tomar no cú!]

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

Se descer da torre paga
Ninguém há para cobrar
Entra na teia da sala
Sinta aranha inocular

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

Se dá bom dia o porteiro
Pede as contas pra pagar
Então faltava dinheiro
Pra comprar o celular

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

Se quer teu caractere
Sirvo a mesa com chuchu
Abacate e tomate
E pimenta da dudu

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

Cê num sabe quê q’o sabo
Tô digitano ligêro
Tô no MSN
Inscreveno dum puteiro

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

Subo nu na curta vida
Quente mando um alô
Pr’os filho da guerra fria
Q’olham pro retrovisor

Ei, twitter,
Vá tomar no cú!
Ei, twitter,
Vá tomar no cú!

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Gamboa.

Se vivesse naquelas barrancas sob a avenida contorno, seria eu filho de uma preta boa? Que não lavasse roupa aos domingos? Que assobiasse um canto de orixá? Vivo seria jogando descalço; chutando a bola ao mar; subindo em coqueiros como sagüis; sangrando a mão com o martelo enferrujado do meu pai.

A baía de todos os santos não seria bela, seria ela; a ilha de Itaparica uma serra ao fundo do quintal, sem mistérios, apesar de lá nunca ter estado. Os barcos do cais inexistente seriam como paralelepípedos da minha rua – e ela não os possuía. Nos barcos emborcados na praia, esconder-me-ia de vizinhos tolos; ou, talvez, fosse descoberto e adotado por uma alemã cujo filho me nutrisse um desprezo pouco sutil. Guardaria carros que aguardam o fim do jazz.

Gostaria eu de jazz? Freqüentaria vernissages por amor à arte?
Ou por um bom vinho gratuito?

Tudo seria possível caso ali me fizesse. Na Gamboa o céu é azul como em qualquer ponta de mundo ao meio dia; como em Londres, Paris, Bagdá, Bangladesh ou Tókio. Entretanto, naquele amontoado de blocos à vista certamente residiriam fantasmas meus presos entre os espaços vazios da argila.

Céu, mar, barcos e vidas não seriam radiografias da minha alma; seriam parte dela e por isso é inútil pensar que a mera descrição das coisas revele a alma de quem quer as recorde desta maneira. O relógio sem pulseiras enterrado sob o piso da sala, antes da sobreposição das pedras e cimento, já não funciona mais.

Esta percepção do passado poderia fazer a memória amar loucamente certo tipo de materialismo vil. Na areia, no barro, nos barcos e nos coqueiros da Gamboa, a lembrança da vida se perderia em profusões de ressentimentos obscuros, como espelhos turvos pelo gastar do tempo... como pequenas ondas a confundir as cores do céu refletidas no mar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Roda.


Tem aquela história da cobra e da picada, do feitiço e do feiticeiro. Adapte-se aos novos tempos é a máxima que o movimento frenético da roda do progresso balbucia como mantra aos ouvidos. Começam, entretanto, a aparecer sinais – virtuais que sejam – a nos permitir interpretar que adaptar-se aos novos tempos pode significar justa e paradoxalmente o desprezo pela roda.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Sobre...

Eu não acredito na existência de ... simplesmente porque entendo que se existe uma harmonia que dá sentido ao universo, não vejo porque ela teria vontade própria como um ser humano qualquer; não é meu pai, nem filho do pai, tampouco espírito santo. Ou não. Gosto de Jesus, mas não gosto de Cristo. Gosto de Jesus vivo, não gosto de Jesus morto. Respeito quem resolve suportar o peso de estar num lugar que não sabemos direito o que é, nem porquê, por meio da fé que redime a culpa por estarmos vivos; ocorre que não me convém resolver as coisas dessa forma porque não pretendo ter respostas para o que sei não haver resposta. Isso me faz, hoje, viver - quase - sem culpa. Gosto de movimento, gosto de pensar amanhã diferentemente do que penso hoje. Gosto de sentir o fluxo do mistério da vida me sacolejando todas as manhãs. Gosto de ser e estar.

domingo, 16 de agosto de 2009

Gota de resignação.

Chega de verdade, chega de querer parar o tempo, chega de oceano de revolta. Vivo a simplicidade das coisas. O mundo que cheiro, degusto e sinto. Chega de universo se movendo, viva o movimento do universo. Descanso em paz. Não encontro respostas para grandes perguntas e fico satisfeito. Amanhã tudo muda novamente e o turbilhão da vida prossegue seu curso tortuoso, quase aleatório, quase manuseado pela projeção de nós. Não sou nada em meio à tamanha imensidão. Sou um ponto se movendo em uma imagem de satélite, entre tantos outros pontos que, sem saber, constroem satélites que nos vêem e nada dizem sobre nós. Assim é a vida: besta e sem sentido. Para respirar é preciso, quando em vez, viver com toda intensidade essa falta de sentido. Inspira, respira. (...) Não é bom?

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Caos II

Feira de Santana às dezoito horas em muito se assemelha a uma metrópole. Ouvindo Arrigo Barnabé no mp3 player, aguardando transporte num ponto de ônibus lotado, senti alguma pulsão transbordada em faróis, ruídos de motores, anúncios luminosos e monóxidos de carbonos expelidos nos ares da Feira.

Arrigo Barnabé é daqueles que fizeram da sua arte uma obra póstuma. A violência do som dodecafônico não somente está em perfeita sintonia com o caos metropolitano como aponta para o que será ele no futuro, quando não mais conseguirmos respirar sem sufocar quem estiver à nossa volta. A música de Arrigo nos dá a esperança mórbida de que quando estivermos próximos do sufocamento tenhamos talvez, numa reversão abrupta de sentidos, um orgasmo total.

A sensação dentro do ônibus, no entanto, era de não mais caber no mundo. Como se fosse necessário me expelir, saltar pela janela. Fora da música, o caos era um terror. Algo em torno de trezentas pessoas se apertavam dentro daquela lataria verde. Meus pés mal encontravam lugar ao chão. A moça da frente achou que eu estava me esfregando nela de propósito. Depois ela percebeu que ao invés de um sacana tarado eu era ali nada mais que seu cúmplice. Nada que sugerisse orgasmo, nada de reversão abrupta de sentidos. Sufocamento apenas.

Mas havia muita cumplicidade naquele esfregar involuntário de corpos. Na expressão dos rostos uma revolta silenciosa, mas muito presente e muito sentida. Em algum momento balbuciei quase involutariamente a palavra caos [como rosebud] e três pessoas me olharam concordando, quase respondendo alguma coisa. Será preciso soltar crocodilos dentro dos ônibus urbanos de Feira para que a cidade olhe em volta e comece a se importar um pouco mais consigo mesma?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Queremos saber.

Um pensamento circular tem assombrado as minhas manhãs. Há muito tempo eu já pensava em comentar algo sobre a escrita em ambientes virtuais. A ‘www’ é um buraco negro que suga a nossa vida como um turbilhão. A internet é anti-matéria em estado puro.

Escrevo coisas que só são importantes porque estão escritas, mais nada. Pedaços de mim estão espalhados aqui por toda parte. Ali, naquele canto direito (abaixo), por exemplo, onde fica o arquivo do blog, no mês de junho constam onze postagens. Os títulos já não aparecem mais. É como um baú que se fechou com antigas cartas nunca enviadas para ex-paixões do colégio no interior. Eu trouxe o mundo para esse baú. Portanto, também sou responsável por fazer da internet a maior lixeira de vida que os seres humanos foram capazes de inventar.

Imagine alguém, pode ser eu mesmo, revisitando arquivos do mês de junho de dois mil e nove, no futuro em que talvez tenhamos no mundo virtual a nossa vida principal, e lendo lá coisas sobre meu quarto tal como ele é hoje; sobre a rodoviária de euclides da cunha; sobre a janela do ônibus a caminho de monte santo. Não existe critério algum para a escolha entre escrever sobre um café amargo que tomei domingo a noite ou as cenas inacreditáveis de Lawrence de Arábia, que reassisti ontem.

Lixo. Minha vida aqui se soma à essa imensa lixeira virtual. E agora, com o twitter, já posso jogar no lixo pensamentos fortuitos ainda mais fragmentados do que os deste blog. No futuro, quando quiser saber quem fui agora, poderei revirar o lixo e tentar encontrar nestes fragmentos os vestígios desse passado perdido no tempo virtual. Chico Buarque diria que decifrar os ecos destas antigas palavras é tarefa vã. O eu que me lê no futuro, entretanto, é que terá que preencher os vazios com mitos do que fui. E então, já não saberei quem sou, mas o que acho que fui.

Hoje pela manhã pensei que o google certamente vai falir e talvez esse blog seja extinto para sempre. Eu não tenho banco de arquivos no word. Senti frio. Será isso mesmo? Melhor não deixar pistas? (...) Mas, talvez, por puro deleite de abrir uma brecha no tempo para falar comigo noutros planos, eu faça um backup do conteúdo do provocações. Ou seria melhor imprimir?

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Contexto.

a Franz Kafka
a Walter Benjamim
a Jorge Luis Borges

Uma praça, uma igreja, palavras interrompidas por goles de café doce e fraco. Não me recordo do nome do pequeno povoado. Na calçada, uma mulher solteira de meia idade, uma senhora já tanto idosa e com dores agudas na coluna, e o velho. Conversa de fim de tarde.

Sobre o que se conversava pouco importava para o velho. Importa mesmo é que ele já não servia para nada; que velho só serve para se escorar um no outro; que velho quando tomba tem mesmo é que morrer; que essa coisa de céu e inferno é coisa inventada para ganharem dinheiro de velho por aqui; que a morte é uma grande piada divina. E se ria, encostado que já estava na casa dos noventa anos.
***

A reinvenção da morte não poderia ser mais natural na sua condição. Já não tem com quem e para quem contar. Só seus velhos companheiros. Mas de que adianta contar coisa para velhos, tão inúteis quanto ele? Os velhos, de fato, parecem já não servir para nada. Ninguém lhes dá ouvidos. Não se aprende mais a viver ouvindo como, quando moleques, capturaram sua primeira rês perdida pelas caatingas do São Francisco. Não existem mais reses perdidas no sertão do São Francisco. Só pessoas. Por alguma razão, que me parece ainda obscura, um estouro de gentes que seguiam juntas pela estrada foi seguido de um refúgio que parece sem volta.

Que o mundo seja mesmo assim, governado por seqüências de acasos entre uma escolha e outra, ou entre uma imposição e outra, não cabe aqui discorrer. A errância pelo mundo também ensina e certamente substituirá as longas noites de lamparinas e estórias. Da mesma forma, os velhos procurarão outro destino para tantas vivências e sabedorias acumuladas. Quem sabe, vez em quando, não apareça um menino vindo de terras longínquas, capaz de escutar com atenção e deslumbre as peripécias de aventuras quase esquecidas? Quando não, ao menos a morte deixa de ser uma companheira sombria e já lhes parece um destino mais natural do que uma vida sem sentido.

***

Consideremos agora o texto acima como independente desta parte que agora escrevo. Hesitei muito antes de postá-lo como está. Resolvi a questão no instante em que pensei e decidi escrever esta parte explicando o porquê de ter publicado dessa maneira.

O fato é que a primeira parte, já que o texto é dividido, não sem razão, por três asteriscos ladeados e centralizados, é uma narração que basta em si mesma; a segunda parte é apenas um comentário – ou uma crítica, se eu me julgar capaz de ser pretensioso. Portanto, construí uma narrativa, e junto a ela anexei a minha crítica à essa mesma narrativa. Pensei o porquê de ter feito isso. Pensei. Não seria melhor que cada leitor interpretasse o texto à sua maneira e disso tirasse as suas próprias conclusões? Porque eu iria empobrecer tão deliberadamente um texto tão bem acabado em dois mínimos parágrafos?

Decidi publicá-lo, ainda assim, da forma como foi. Pensei que eu não quero apenas sistematizar leituras das coisas e jogá-las no mundo como se eu não existisse. Um leitor mais ortodoxo poderia dizer: ora, apareça no texto! Se desejar ser sutil, o faça, mas esteja lá. Diga que você estava sentado numa cadeira assistindo aquela cena e sentido cansaço e calor, e que os braços doíam de tanto segurar a direção da moto naquele areião sem fim.

Poderia fazer isso. Mas não quis fazer. Simplesmente optei por descrever a cena. Depois, senti falta de mim ali, mas não quis alterar algo que nasceu com uma certa naturalidade. Este conflito me levou a escrever a crítica que segue o texto. Eu preciso estar ali, a minha opinião sobre as coisas precisam acompanhar a descrição crua das coisas. Isso é muito perceptível em vários pósts deste provocações.

Sei que há um risco enorme que eu reduza as possibilidades interpretativas dos leitores e com isso, como já dito, meu texto empobreça de sentido. É um risco. Mas confio em meus leitores. Já tive evidências aqui que as pessoas podem pensar ao lado e para além do que eu penso dizer. Enfim. Mas façam o exercício de ler a primeira parte – a narrativa – de forma independente da minha interpretação. Quem sabe os navegantes leitores não sintam com maior grandeza e naturalidade o que tentei dizer com outras palavras, de sentido tão limitado, na segunda parte.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Cardápio, por favor.

Por Juliana Ribeiro.

[http://www.flickr.com/photos/juribeir0/]

Um trecho importante foi omitido do diário. Vale lembrar que após retornarmos exaustos, fomos curtir um pouco a night de Canudos.

Muito movimento na praça, umas três pizzarias abertas e mais uns dois botecos com sinuca (claro!). No entanto, optamos por uma churrascaria lá na entrada da cidade... a pizza poderia ser muito indigesta à noite. (que coisa!)

A churrascaria tinha um movimento, umas duas mesas de gente bebendo e conversando do lado de fora, uma sinuca com uns dois jogadores do lado de dentro e um som agradável ao estilo aviões do forró.

Logo chegou uma moça pra nos atender. Naturalmente pedimos uma cerveja e... “o cardápio porfavor”. Cardápio? Ela nos olhou com a cara de quem não sabia como agir diante de duas pessoas tão estranhas. “peraê”. Voltou. “É que... Eu vou chamar ali o dono”.

Veio um rapaz que não era o dono: “boa noite, vocês querem pedir?”. E nós já desconcertados por ter pedido o tal cardápio, não cometemos o mesmo erro:

– Err... A gente queria saber assim o que tem.

Ele disse que tinha “bode... (_____) calabresa... (_____) frango...”

Fiquei sem saber se devia perguntar:

– E carne de boi, tem?

– Ah sim, tem carne de boi também. Coração? Coração não tem não.

– Hum, certo. (pausa) Eee... como as pessoas costumam pedir aqui?

Pensei nas outras mesas em volta. Ele olhou com a mesma cara estranha e um riso amarelo acanhado. Devia estar rindo da gente.

– Hum... Eu vou chamar ali o dono que ele explica.

Depois de conversar com o dono entendemos que de fato não existe um cardápio ou um preço pra alguma coisa. Ele, acho que já avisado, nos tratou como verdadeiros turistas estranhos numa terra que turista não é um bicho tão comum quanto bode! Disse que era tudo muito bom, gostoso e que a gente dava o preço. Explicamos o que queríamos. Ele falou que entre 10 e 20 reais ele fazia lá a quantidade. Ele trouxe o que achou que valia 15 reais... E foi muita carne!


Ainda ganhamos de entrada pititingas do açude Cocorrobó com gosto rançoso e aparência de que tinham acabado de ser pescadas e jogadas no óleo com aqueles olhinhos esbugalhados. Só com muito limão em cima... E graças a tudo isso estava uma delícia!


Continuo sem entender como aquilo ali funciona. Ajudou um pouco quando compreendi depois que nas duas mesas cheias estavam sentados os donos. De uma mesa saiu o dono que nos atendeu, e da outra veio a esposa dele me perguntar se estava gostoso com o sorriso improvisado das baianas de acarajé do Pelourinho em Salvador.


Sem querer ferir seu orgulho sertanejo... Fomos turistas em Canudos!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Viração.

Estive anteontem no bar quatro estações. Como todas as segundas feiras, dia para aproveitar a bohemia dobrada, alguém tinha que bater lá em casa para me convidar para o desfrute da promoção. Duas senhoritas - ao que me consta. Uma delas conheci por caminhos diferentes que se cruzaram em alguma encruzilhada dessas comuns numa cidade como feira de santana. A outra conheci por essas coisas do acaso mesmo. Ela é amiga da primeira. Entretanto, sobreviveu ao final já sem as sombras dessa adjetivação.

Sair de casa pode ser uma aventura imprevisível. Ainda mais quando não planejamos, ou seja, quando estamos despreparados. Ontem o mundo me fez algumas supresas, preparou alguns acasos que mais pareciam coincidências, e também me pregou algumas peças. Um senhor já demasiadamente embebido de álcool, ressucitado na sequência do beber e cair, veio à minha mesa por à prova algo como a estrutura das minhas pensações. Deixei bem claro que não preciso de estruturas para pensar. Gosto de pensar com elas, mas dispenso-as quando entendo necessário. Mas, enfim, eu diria que era um grande desafiante. O mundo, entretanto, parece me subestimar. Achar que eu não saberia lidar com aquela situação foi um derrapão grave da coincidência do acaso. Me provocou, mas não me convenceu. Mas gostei, afinal, do resultado da prova.

Como eu estava sentado em frente às portas dos banheiros, era comum que o fluxo do bar confluísse naquela direção. Isso fez com que pessoas que bebiam lá fora me vissem lá dentro do bar. Encontrei uma pessoa com a qual me deparo muito raramente. Mas o curioso, disse a ela depois de um papo ligeiro, é que parece que sempre estamos pensando a mesma coisa, na sequência. Disse que o acaso, vez em quando, fazia com que ela e eu, acredito que muito apegados às nosssas casas, saíssemos coincidentemente em direção ao mesmo local, no mesmo horário.

Em outra rara oportunidade semelhante, disse a ela da minha angústia com os primeiros minutos seguintes ao momento em que desperto. Nada do que havia pensado, calculado, planejado com tanta precisão no dia anterior fazia mais sentido naquele átimo de tempo. Tudo se derretia como gelo no deserto. Ela sentia a mesma coisa e rimos à bèça. Mas eu simplesmente não sabia como lidar com aquilo. Foi que a partir de certo tempo, decidi simplesmente não pensar nessa angústia amanhecida. Decretei à Razão, ilustre soberana de mim: é proibido pensar sobre quaisquer coisas minhas nos primeiros minutos após o acordar.

Pobre razão. Já havia perdido grande parte de mim para os sonhos que eu acabava de sonhar, tão logo a luz começava a entrar no quarto. Acho que esse tormento matinal é o tufão dos meus sonhos me soprando aos ouvidos... 'cuidado com a certeza! cuidado com as convicções! cuidado com os dogmas! cuidado com as religiões!'.

A razão, por enquanto, sempre me toma de volta - isso é fato. Mas já não reina absoluta. Disputa cada palmo de mim com o irracional, com o ilógico, com o incorreto. Já há algum tempo assisto essa luta dentro de mim. Hora eu torço para um; outra eu cruzo os dedos para outro. Sinceramente, gostaria que um dia eles se entendessem e parassem de brigar. Acho um pouco difícil. Mas não desgosto em ver os dois brigando como crianças malcriadas, rebeldes. Como um pai que vê na luta entre os filhos um preparo para ambos enfrentarem o mau tempo do mundo, assisto a tudo com tranquila calma. Decidi, entretanto, já não aguardar um resultado final. Estou dizendo as coisas pra ver no que é que dá.

domingo, 19 de julho de 2009

Diário de Bordo.

Canudos, 18 de julho de 2009. Acordamos, Juliana e eu, prontos para encarar duas comunidades na zona rural de Canudos. Eu, para apresentar o projeto de assessoria em que trabalho, ela, para captar momentos numa Cannon da qual agora não me recordo de nenhuma especificação técnica. Nos ofereceram uma moto para chegarmos até lá. Uma Honda Tornado, 250 cilindradas, 4 válvulas. Quando acelerei pela primeira vez essa moto, pensei: fudeu! eu pilotando esse burro bravo quando estou acostumado às populares 125/150 cilindradas, que são mansas como mulas velhas.

De fato, quando fomos ao parque estadual de canudos, antes da reunião [marcada para 10 da manhã], com o objetivo de me acostumar com aquela coisa, não deu outra: no entorno do 'alto da favela', fui fazer um retorno e ela acelerou tão forte que fomos ao chão sem que eu nada pudesse fazer. Além de muito pó na calça, algumas escoriações no cotovelo e um pisca-pisca quebrado, nada houve demais. Juliana também não chegou a se machucar seriamente.

Chegamos na comunidade da Rocinha, à beira do açude Cocorrobó [que inundou a velha canudos]. Gente simpática e acolhedora, como quase sempre. São pescadores. Criam um bodinho também, mas se reconhecem como pescadores. Após a reunião almoçamos na casa de seu Luís [com aviões do forró e pisadinha como fundo musical]. Almoço simples, segundo eles. Mas comemos dois tipos de carne e eles, além de prepararem uma saladinha, tiraram o pó daqueles pratos de porcelana que ficam guardados em armários para nos servir.

Pela tarde fomos à comunidade do Angico/Barriguda. Afora alguns excessos do seu Manoel Vermelho, que tinha tomado umas antes da reunião, tudo correu bem. Na verdade, eu achava até divertido seu Manoel falar sem parar e usar quase todo o tempo para dizer que gostava mesmo era de falar. No final, vieram aqueles abraços sinceros que me fazem esquecer qualquer cansaço de fim de dia. No embalo, fomos ainda para um festival de sanfoneiros que rolava em Canudos Velha, do outro lado do açude. O clima tava bom, mas não ficamos muito. As dores da queda e o cansaço fizeram com que voltássemos para Canudos [sede] sem dançar um forró sequer.

***

Canudos, 19 de julho de 2009. Juliana teria que retornar à Salvador. A comunidade que eu iria, o Bom Jardim, ficava a 100 km de distância da sede de Canudos. Vocês leram bem: 100 km. Mas não é só. Destes, 15 km eram de areia. Funda. Precisava de um guia. Como estava de moto, infelizmente minha linda fotógrafa teria que retornar.

Todo mundo que me falava da estrada do Bom Jardim colocava na boca aquele sorrizinho maldoso que dizia: voce vai cair na areia; voce não vai chegar lá; voce é um pó de arroz da cidade e não está acostumado com isso aqui. Eu já tinha caído no dia anterior e chegar ileso em Bom Jardim era uma questão de honra. Na saída, às oito da manhã, seu Marquinho, meu guia, já disse: eles deveriam ter arrumado um motoqueiro pra te levar. Fiquei meio puto. Na verdade, bastante.

Resolvi correr só para que ele ficasse com um pouco de medo. Eu já havia domado aquela moto brava. Tinha ela em minhas mãos e um vento frio gelando o nariz. Paramos no primeiro povoado e tomamos café na casa de uns conhecidos de seu Marquinho. Quando disse que iria a Bom Jardim, mais caras se movimentavam como se quisessem dizer: Bom Jardim é Barril!

Eu já pensava que cair seria mesmo um desastre. Seria dar razão a todo mundo. Seria ter que pensar depois que em Canudos não se falaria de outra coisa: 'Eu não disse que ele ia cair?'. Fui com mais coragem que cara. Quando apareceram os primeiros areiões, fiquei meio nervoso, mas consegui me concentrar. Aliás, agora entendo o papel da 'concentração' para quem é piloto. Não dá para se distrair. Quando parei para pensar que Rubinho Barrichello deve sofrer dislexia, quase caí na areia. O pé no chão me salvou. Com mais uma dessa e uma escapada numa curva fechada, cheguei ileso a Bom Jardim. É uma comunidade linda. Tudo verde. Quase tudo. Tinha uma porção de mato com flores roxas que formavam com o verde algo como aquelas combinações de cores complementares de Van Gogh.

A reunião foi tranquila no início, mas no final perdi o controle e resolvi encerrar logo. Seria melhor captar outras impressões nas entrelinhas dos diálogos paralelos que continuar a reunião sem a diretriz que me levava até lá. Almocei na casa de um vaqueiro mui digno. Um banquete. Palitei um pouco os dentes e, antes que pensasse como seria bom cochilar na rede da varanda, gritei seu Marquinho para que tomássemos o caminho de volta. No retorno, nenhum derrapão na areia. Cheguei em Canudos às 18:30, cansado, mas sem um arranhão sequer no orgulho de quase sertanejo que fui.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Conversa. (Lado A)

Não sou eu o único autor destas pensações. Pretendo colocar aqui o meu ponto de vista sobre um papo de sofá com Davi Lara, ontem a noite, na sala da república dialógica lá de casa. Nem seria preciso escrever que são fragmentos apenas, mas prefiro ser redundante que incompreendido.

Dizia a Davi Lara que li outro dia na internet que existe uma espécie de papoula que só nasce em uma pequena região do norte da Índia. É conhecida como a “papoula negra”. A informação era de que ela seria capaz fazer com que pessoas conversassem por dias seguidos sobre minimalismos inacreditáveis, porque seu princípio ativo estimularia uma expansão absurda do nível de entendimento do entendimento do outro.

Dizia ainda que gosto da internet porque ela era uma saída razoável para que certas conversas não se percam em ecos como as nossas palavras naquela sala, naquele momento, que entravam pelas paredes, em cada fresta do piso, debaixo do sofá onde certamente haveria uma teia de aranha, na qual estaria preso um daqueles casulos que mais parecem uma pequena bola de veludo branco, ou uma visão ao longe de uma imensa plantação de algodão, que ao ser aproximada, nos mostraria que ali havia trabalho no movimento das mãos dos catadores do algodão, que posteriormente iria para uma usina se transformar pela ação de outras tantas mãos em movimento em, por exemplo, roupas como a que estávamos vestidos.

O trabalho é mesmo algo fascinante. Conversando sobre o pensamento materialista [um paradoxo], disse que eu me encontrava hoje numa zona indistinta entre ser um materialista inconformado ou um metafísico mal resolvido, ora pendendo a um, ora a outro. Estou num ponto em que esses extremos se tocam, num canto em que nenhum dos dois consegue me convencer satisfatoriamente de nada. Tenho desconfiado de tudo, afinal. Mas isso não me joga na vala comum dos relativistas. Também não me satisfaço com eles.

Concordamos, Davi Lara e eu, que o materialismo, de certa forma, precisa de rigidez em sua forma de pensar e, principalmente, de explicar o mundo. Essa rigidez nem ele nem eu gostamos. Ele muito menos que eu, certamente. A rigidez do pensamento materialista nos coloca num esquema que parece sufocar o livre pensar, porque se existe rigidez, existem também limites para pensar a própria estrutura do pensamento. Os materialistas [inteligentes] costumam direcionar essa contingência para a dialética que Marx salvou em Hegel. Mas quando a própria dialética hegeliana assume esse aspecto de dogma, os limites mais uma vez batem à porta ao pensamento materialista.

Disse a Davi Lara que gosto da forma de pensar de Hannah Arendt, filósofa alemã considerada liberal pela esquerda marxista, e de esquerda, pelos liberais. Arendt dialoga, entre outros, com o próprio Marx, com Heidegger, seu orientador e amante, Santo Agostinho e Walter Benjamin. Como falávamos de materialismo, comentei um pouco do diálogo de Arendt com Marx, que acho muito interessante.

Pedindo licença para discordar de Marx, respeitosa da grandeza de sua teoria e receosa de ser jogada na vala comum dos críticos oportunistas da obra do pensador alemão, Arendt entende que ele, ao colocar o trabalho como única ação que representa a totalidade da relação do ser humano com o mundo, parece não ter ‘previsto’ certas conseqüências nefastas desta absolutização.

Ainda não li ainda A Condição Humana, obra em que ela trata deste tema com profundidade. Mas me atrevo a entender o que Arendt propõe. Acredito que ela chegou a essa conclusão colocando a nossa atual sociedade de consumo como resultado desta centralidade no trabalho. Não me recordo bem, mas acho que ela faz explicitamente essa relação. Devo estar escrevendo sobre algo que li. Enfim. Essa conclusão me parece muito pertinente. Mas antes de adentrar nela, vamos antes ao que concordo com Marx.

O trabalho é quem produz a riqueza no mundo, a partir da intervenção qualificada que o homem nele faz; a organização deste trabalho, no capitalismo, é controlada pelo que ele chama de “capital”, representado pela força das ‘leis de mercado’, da qual, inclusive, são escravos os próprios sujeitos capitalistas. O que Marx parecia sugerir, é que a absolutização do mundo do trabalho acabaria colocando o controle dele nas mãos dos seus sujeitos, os trabalhadores.

Foi um risco, acho que na opinião de Hannah Arendt e na minha. A absolutização do trabalho que Marx propunha desprezava tanto o pensamento independente das relações estabelecidas com o mundo, quanto o resultado do exercício do pensamento em relação à práxis: a ação humana menos trabalho. Entendo que Arendt quis dizer que o trabalho era apenas uma forma de relação com o mundo, ou seja, não era a única. Esse certo “desprezo” pelo pensamento independente (chamado simplesmente de “pensamento burguês” por ele) fez com que a teoria materialista de Marx se fechasse num ciclo em que a própria dialética estaria comprometida pela necessidade de rigidez do pensamento.

O pensamento independente seria uma terceira forma de conceber a relação entre ser humano e natureza, além do trabalho – mas não sem ele. Seria a partir desse pensamento que o ser humano deveria elaborar as suas intervenções mais relevantes no mundo, colocando-as em prática através da “ação”.

Com o mundo na palma da mão, tentei mostrar a Davi Lara as minhas conclusões: a potencialidade do trabalho humano é tão avassaladora que as necessidades mais básicas de toda a humanidade já teriam sido supridas desde meados do século XX, caso a riqueza produzida não fosse controlada pelas leis de mercado, que necessitam da desigualdade para seguir hegemônicas; ocorre que a tecnologia multiplicou ainda mais essa capacidade do trabalho, e fez com que produzíssemos muito mais do que precisávamos para manter uma vida confortável; fez com que o mercado entendesse necessária a existência de um exército de reserva para mão de obra; afinal, fez com que o consumo explodisse para dar conta da nossa própria capacidade de produção.

Arendt lembra que com a sobrevalorização do trabalho e da economia, que ocasionou a perda da nossa capacidade de pensar politicamente o mundo, tudo o que sobrou como momento de lazer para nós foi consumir o que produzimos. Até a arte, como diria Adorno, precisou adentrar na onda gigante da lógica cultural do consumismo. E já escrevi aqui sobre as conseqüências de colocar o consumo como forma dominante de lidar com o mundo. Agora o consumo, uma criação, um efeito colateral da sociedade do trabalho, avança sobre a criadora e ameaça, nestas décadas pós-modernas, lançar as bases para um mundo sem trabalho.

Eu, sinceramente, entendo que seria uma merda completa trocar o trabalho pelo consumo. Entendo o tabalho como uma forma de ser livre, e não de ser prisioneiro da sua lógica. Acredito que o trabalho, se bem entendido, pode nos libertar da necessidade. Já o consumo, em sentido inverso, nos aprisiona no reino da necessidade. Milton Santos é quem nos chama atenção para o fato de que hoje o consumo é quem representa o verdadeiro fundamentalismo.

Enfim. Davi e eu concordamos, depois de pensar um pouco, que deveríamos encomendar uma remessa de papoula negra do norte da Índia para a república lá de casa. Sem ela, com o tempo, certamente as nossas conversas serão muito monótonas. Neste mundo globalizado, nossa república não pode estar distante do comércio a nível mundial. Entretanto, como nós ainda nos recusamos a operar num mercado internacional que tem o dólar como moeda padrão, sugiro que esperemos passar essa onda de Estados Unidos no mundo para fazer a encomenda aos nossos amigos indianos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Chuva em Canabrava.


Sempre que chego a Salvador desperto antes da brasilgás e vejo aquelas casas suburbanas dependuradas em morros. Não sei bem o que representam em mim. Outro dia passava por ali ouvindo 'gente humilde' (de chico e jobim) no mp3 e quase chorei. Mas elas são muito menos que isso. Talvez uma imagem apenas. Eu, que vivo entre a Pituba, Rio Vermelho-Barra, MAM e Teatro Castro Alves, as vejo como um anexo obscuro de uma cidade que parece bastar a si mesma nesse roteiro que descrevi. Nós passamos por ali, e de repente elas desaparecem e abrem espaço para a grandiosa capital da Av. ACM, Iguatemi e Igreja Universal.


As pessoas ficam lá.


Sempre que penso num soteropolitano típico localizo-o entre os freqüentadores do jazz do MAM e os tomadores de tequila dos barzinhos de plástico da Pituba. Mas que maioria é aquela que mora pelos calabares, pelos subúrbios ferroviários?

Hoje, a caminho da paralela, tomei uma rota de fuga dos engarrafamentos por dentro daquele enigma. É enorme. Aquilo que da BR 324 parece um cenário, tem um recheio de gentes vivendo e mais casas de blocos à mostra.


Becos, vielas, escadarias, bananeiras.


Bares improvisados em salas de estar, cadeiras brancas e cerveja no balcão. Um jogo de baralho, um grito estridente, muitas tv’s ligadas, carros na contramão. Sempre desconfiei disso, mas estar ali é muito diferente. Como deve ser olhar a chuva dali de dentro? Como deve ser não sair de casa sem enfiar o pé na lama ou correr o risco de escorregar beco abaixo? Como deve ser ter um quarto com a janela para um barranco prestes a desabar? Como deve ser a felicidade ali?

Passava pelo lado de dentro do vidro do carro e pensava se havia na UFBA algum grupo de pesquisa que elaborava um projeto de intervenção ali. Eu duvidei porque acho que o pessoal da Ufba sempre tem muito mais o que fazer. A Salvador que vivo parece ser mais feliz ignorando aquelas outras cidades tão Salvadores quanto.

Eu no MAM,
eu na Concha,
eu no Mar.

Uma tarde em Itapoã,
um pôr do sol no Farol
Ferreira Gullar

O poeta,
por certo, indagaria:
quantas tardes há na Cidade da Bahia?

Terno.


Shopping Boulevard, 16:30h. Eu, frente a um espelho, vestido num terno preto. Tal e qual ‘o herói’ de C. Veloso, [ouçam a última faixa do álbum ‘Cê’] vi em mim a imagem de quem cria que sempre olharia com desdém total. Um homem cordial. Encerro o curso de direito ainda sem saber se sou um otário de terno preto ou um ‘herói’ canoeiro remando contra a correnteza. Ou, quem sabe, uma imagética e cruel síntese entre as duas coisas.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Rebote.


Se havia uma predisposição em retornar ao tema do post ‘São João’, não poderia perder o embalo de um bom rebote da provocação lançada. Ciente, entretanto, da vastidão do tema e da impossibilidade de esgotá-lo naquela oportunidade ou mesmo aqui, como um advogado esperto que coloca letrinhas miúdas em rodapés de contratos, alertei que retornaria àquela temática por haver ‘muito caroço no angu’. A bela análise de discurso – que na internet chamamos de ‘comentário’ – elaborada por Lorena comprova isso. [confiram lá no post referido antes de prosseguirem a leitura]

Uma primeira questão que podemos nos debruçar, na linha proposta pelo comentário, é quem influencia quem nesse jogo entre o cotidiano e a captura dele pela arte. [sugerir que ‘aviões do forró’ é arte é uma grande provocação] Essa me parece ser uma daquelas questões que tem como resultado após dias, meses, anos, décadas e séculos de profundos debates estético-filosóficos, a chegada ao enigma fundamental da existência humana: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?

[aliás, essa coisa da negatividade constitutiva do ser, tão bem a cara do nosso tempo europeu, é filosofia pequena diante de tão grandioso mistério]

Deixemos de lado as divagações. Obviamente que não conseguirei aqui dar conta dessa primeira questão. Entretanto, como ela é fundamental para entender essa temática, posso então levar adiante a principal tarefa a que gosta de se dedicar o intelectual: falar sobre o que não sabe.

Eu compreendo essa mudança de paradigmas, que deixam obsoletas certas visões fantasiosas de mundo [como o mito do amor romântico], como reflexo dessa dissolução das identidades rurais e urbanas no interior. É uma mão dupla, aliás. É muito comum o jovem de classe média da cidade deixar, às vezes, o carro na garagem e montar cela em cavalos que passam batendo as ferraduras nos paralelepípedos. Aqui o fator cultural e simbólico talvez fale mais forte.

Já em relação ao jovem da zona rural, o contexto é um tanto mais perverso. [escrevo isso, mas não pretendo aqui pregar ninguém na cruz] Com a viabilização do transporte escolar, garantido pelos recursos do FUNDEF desde os idos de 1996, foi notável o avanço do projeto do governo brasileiro, desde efe agá cê, de ‘universalizar a educação’. Aliás, onde se lê governo brasileiro, leia-se Banco Mundial. Ocorre que essa gurizada foi jogada num sistema educacional completamente fora da sua realidade do campo. Na escola, eles certamente devem aprender coisas bem úteis, como, por exemplo, a usar a fórmula que converte graus celcius em farenheint.

Faço a ressalva, entretanto, que não gosto de pensar que os jovens da zona rural são obrigados a viver e morrer lá somente porque lá nasceram. Se eu pensasse dessa forma, deveria, por questão de coerência, retornar para o lugar em que nasci e passar a vida inteira cuidando de inventários e separações de casais. Gosto de pensar que para esses jovens basta o poder de escolha.

Nada que não dependa da vontade humana deve ficar engessado no tempo.

Ficar na roça hoje, significa estar em parcelas de terra cada vez menores [as famílias nordestinas, como sabemos todos, costumam ser grandes], sem perspectiva de melhora de vida, e ainda sem acesso ao orkut, twitter, msn e outras tantas modernidades que assim como nos faz dependentes, também o fazem com eles. Não significa que não existam oportunidades de vida na zona rural. Muitas vezes, basta um pequeno projeto que forneça, por exemplo, matrizes de cabras durante o período de cinco anos para que um jovem consiga montar um pequeno rebanho capaz de garantir seu sustento. Falta é apoio e vontade política mesmo.

As conseqüências dessa quase expulsão da roça para a cidade trazem consigo uma carga incalculável de frustrações acumuladas. Talvez daí que saia a faísca dessa explosão do ‘estar por cima’, como diz lorena. Não sei se entro aqui numa psicologia barata, mas acho que é um ímpeto do ser humano projetar suas frustrações na busca por outros desejos, talvez até mais fáceis de alcançar. Não é a tôa que a aparência tem sido cada vez mais valorizada por esses jovens. Os rapazes, por exemplo, estão agora numa de fazer moicano – e não há como não rir, às vezes, do resultado disso.

Nessa predominância do mundo das aparências, algo que no ‘mundo civilizado’ já é realidade há muito tempo, não é pra menos que manifestações das opressões nossas de cada dia se manifestem com mais força também. Neste sentido, as letras de aviões do forró retratam com alguma fidelidade a mutação que o machismo já existente sofreu na emergência das identidades ‘rurbanas’. Da mesma forma, o contrabaixo e a bateria (os sons graves) são marcantes em aviões do forró talvez pelo fetiche de instalar trios elétricos em porta-malas de carro. O grave explora melhor a qualidade do som automotivo, que se for bom mesmo não ‘chia’ com o volume muito alto. E parece óbvio que quem está por trás da banda compreende isso. Essa linguagem dialoga diretamente com esse novo mundo em que o status depende da conciliação entre a ‘fuleragem’ e a vida de trabalho, que por sua vez, garantirá o sustento da aparência de uma vida somente composta de prazeres. Sexo, cerveja e forró.


O fuleiro é um tipo de ‘malandro’ como o carioca, só que nascido no ceará.


Existe para o fuleiro, assim como para o malandro, um padrão de comportamento moral muito bem definido e, dentro dele, um correspondente feminino. É aquela que ‘faz valer na cama’ e que ‘se vinga’ da traição, como já disse lorena. Aliás, tem até uma letra que diz ‘mulher não trai / mulher se vinga / mulher cansou de ser iludida’. Elas adoram essa. Nessas elas se impõe e não duvidem, elas conseguem provocar a fuleragem [que não gosta nada de ser ‘traída’]. E assim como o malandro carioca, o fuleiro também enfrenta a ‘dureza’ de estar ‘por baixo’ com o ‘gole de cachaça’, fazendo graça de si mesmo. Mais uma vez, a linha que separa o estar ‘por baixo’ do estar ‘por cima’, quando se leva a vida no bar para ‘beber, cair e levantar’, também se move como se liquidificada estivesse.

[a comparação entre o malandro e o fuleiro é fruto de pensação coletiva da república lá de casa]

Citação.


"Eu tô na linha dos velhos pessimistas. Eu acho que a vida é um minuto. O ser humano, completamente desprezado, nasce e morre. Então, o sujeito tem que olhar pro céu e sentir que é pequenino, que tem que ser modesto, que nada é importante. A vida é um sopro, um minuto. Então não há razão pra esse ódio todo."



Oscar Niemeyer

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Corredor.

Desta vez não deu. Fui obrigado a sentar no corredor do ônibus até muito além de Serrinha, aquela cidade da vaquejada. Pois bem. Sem grilos nem medos de ‘mim’, olhemos pra dentro, pois.


***


Na poltrona do outro lado do corredor, pouco a minha frente, estava aquele rapaz que não sei se chamo assim ou de senhor, já que ele possui idade para tanto. Ocorre que ele ostentava um visual de malhado de academia que lhe vestia de uma forma de aparentar severamente indefinida. A blusa branca colada no bíceps, marcas de acne na face, combinadas com um vozeirão à lá Francisco Alves, compunham um personagem insólito e complexo.


Quando começou a conversar com a cabeça que sobrava da poltrona em minha frente, fui impelido num golpe rápido da audição a prestar atenção. A cabeça aparentava ouvir sem muito entusiasmo, num quase silêncio. Como os músculos das nucas não se movem para formar expressões que nos auxiliam a interpretar certas reações, o interlocutor do senhor da academia permaneceu uma incógnita daquele meu ponto de vista. Ouvir, entretanto, é que foi bom.


***


Minha ex-mulher. Uma ingrata, rapaz. [pausa] Ex-mulher, né não? Cê sabe como é. A menina tá se perdendo lá com ela. Oito anos, rapaz, precisa ver. Uma princesinha a menina. Agora ela fica levando a menina pra academia. Eu já disse a ela. Vou entrar lá e meter a porra nela e naquele escroto que ela tá se esfregando agora. Um monte de macho velho suando em cima da menina, rapaz? Se não tem com quem deixar, deixa com a minha mãe, né não? Com a vó, porra. Por ela não. Ela que fique lá se esfregando nos macho dela lá. Ali eu conheço. Agora botar a menina lá dentro? Né não? Eu vou no juiz. Vou. Né não? Tô me esfolando pra pagar a pensão da menina, rapaz. E ela lá... acha que dá exemplo. Isso lá é bom exemplo? Ela se acha a esperta. Ela fez faculdade, sabe? Pensava que eu era otário. Ela se fudeu comigo. Pensou que porque fez faculdade podia me fuder. Ela tira uma grana naquela academia e queria me esfolar na pensão, rapaz. E eu só posso ver a menina lá na academia. Se um peso daquele cai na cabeça da menina eu trucido aquela vaca.


***


Vagabundo. Filho da puta atrasou a pensão de novo. [aumenta a velocidade da esteira] Eu que sou burra. Existe camisinha pra quê, idiota? Parecia uma adolescente com aquele troglodita. Mas Mimi não tem culpa do pai que tem. Coitada de Mimi. Quanto mais longe ele estiver dela melhor. Ainda bem que ele caga de medo de Wando e quase não vem aqui. Nunca mais transo na esteira da academia.


***


Minha mãe... Luiza da quarta série riu do meu sapato hoje na frente das meninas e elas riram muito de mim. Estava todo arranhado, minha mãe. EU – QUERO – OUTRO. Agora! Foi Janaína, aquela burra que arranhou meu sapato. Não sabe lavar nada. Bota ela pra fora! Agora!


***


Eu quero é voltar pra Juazeiro.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A Feira.

Nos subterrâneos do comércio da Feira, adolescentes negros pobres morrem estatisticamente em razão de disparos de armas de fogo montados em motocicletas. Alguns bairros carregam Feira no nome e enumeram cardinalmente algumas das suas faces múltiplas. Uma Feira existe no limiar entre o abandono do passado e o fracasso de um projeto de futuro; nem boiadas, nem progresso. O CIS parece uma cidade fantasma. O CIS é tão alienígena em Feira de Santana quanto os viadutos de José Ronaldo. Quando passo no complexo viário da cidade nova penso estar em outra cidade. Ao sair do viaduto e novamente enxergar a velha Feira, compreendo que sem as suas intervenções alienígenas Feira não seria uma cidade tão intrigante.


Os viadutos são símbolos de um progresso que tomou algum atalho para longe do caminho da Feira. Fui informado que crianças levantam os braços e gritam - felizes e inocentes - ao passarem pelos viadutos. É como uma promessa cumprida. José Ronaldo gosta de promessas cumpridas. São, em verdade - e com o perdão do trocadilho, promessas compridas. Duvido que alguém consiga alcançar a vista na outra ponta. No entanto, não há sensação indescritível como quando no trânsito da Av. Getúlio Vargas deparamos, como num filme de David Lynch, com um viaduto sobre a Av. João Durval.


José Ronaldo é um gênio. Vai conseguir entrar para a história de Feira percebendo o quão simples parece a empreitada: venda ilusões a um preço caro de realidade. O viaduto da cidade nova está superfaturado de realidade; ele representa a ilusão de que Feira conseguiu chegar aonde queriam os seus cartolas dos anos cinqüenta. Como se numa remota e bela manhã, o progresso tivesse chegado em lombos de burros, numa imensa tropa de caboclos que, após cumprida a missão, retornaram para o seu universo bordado de couro e não mais empoeiraram com suas boiadas os móveis dos casarões da Senhor dos Passos. Daria um cordel: “A chegada do Progresso em Feira de Santana”.


***


(Feira deveria respirar aliviada pelo fato do progresso ter se esquecido da cidade. O progresso chegou a Canudos em 1897, junto com as estratégias do Marechal Bittencourt. Se o progresso aqui tivesse chegado, não se ouviria ondas de AM nas manhãs brancas de obscuras neblinas; não haveria o odor das entranhas da cidade exalando do esgoto no Centro de Abastecimento; não haveria paralelepípedos na avenida Getúlio Vargas; não haveria vendedores de frutas no ponto de ônibus da praça da marisa; não haveria tanto emprego no ramo da pirataria; não haveria feiras que só são possíveis aqui, debaixo desse céu e em cima desse chão...)


***


Uma legião de trovadores sub-urbanos cantam as feiras das madrugadas em violões loucos e desafinados. Feira é linda. É difícil decifrar essa esfinge. Os olhares estrangeiros aqui estão dentro de nós. É difícil encontrar um feirense nato de sessenta anos. Feira é uma jovem cidade feia. O ônibus do transporte coletivo de feira é verde para colorir o cinza da cidade. Há ônibus vermelho também. Verde e vermelho são as cores do fluminense e da bandeira de Feira. O Fluminense foi bi-campeão baiano em sessenta e três e sessenta e nove. De lá pra cá nunca ergueu a taça do baiano, ao que me consta. Mas é assim que eu gosto de Feira.


Desnortear-se aqui deveria ser um esporte nacional. O Brasil deveria, desde já, beber frustração dos olhos d’água de Feira e sentir uma possibilidade que o aguarda no futuro. Lagoas secas. Toda esperança será castigada. O Brasil pode se tornar uma imensa Feira de Santana. Eis a profecia. O Brasil vai ficar cinza como a fachada da igreja do senhor dos passos. Outros brasis emergirão; outros ventos noutras direções soprarão a brasa. E as Feiras de hoje, cinzas leves que serão, flutuarão nestes ventos até repousarem num velho móvel empoeirado de algum porão de museu da Cidade da Bahia.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Eu's.

Outro dia aceitei a provocação de um filósofo esloveno ao ler que a apreensão da filosofia oriental pelo ocidente havia sido um desastre total. Slavoj Zizek diz que enquanto no oriente o princípio básico da paz interior, mediada por meditações e técnicas de auto-conhecimento, servem ao objetivo final da destruição do próprio “eu”, no ocidente esse princípio foi assimilado justamente com objetivo oposto, ou seja, a reafirmação absoluta do “eu”. É evidente que essa apreensão do “eu” enquanto totalidade acaba tendo por conseqüência o negligenciamento e a irresponsabilidade com as coisas do mundo (já que o “eu” simplesmente sublima nele próprio o que é exterior). Mesmo que sem nenhum compromisso em cartório com Hegel ou com seus pupilos, entendo ser perigoso querer enterrar a dialética de forma tão vulgar.

Essa onda de “orientalismo”, que veio desaguar na avalanche de livros de auto-ajuda nas vitrines de livrarias de shoppings, coloca o ocidente diante de questões éticas que essa redução do mundo ao “eu” está muito longe de resolver.

Sem meias palavras, essa “filosofia” híbrida disseminada pelos manuais de auto-ajuda se encaixa como uma luva em uma sociedade na qual o consumo assume um papel cada vez mais central na vida das pessoas. Como diz Hannah Arendt, citada no meu Orkut, uma sociedade que estabelece como parâmetro de ação o ato de consumir jamais será capaz de cuidar do mundo simplesmente porque o fundamento último da atitude do consumo é destruir tudo o que toca. Neste sentido, as representações do Estado e dos “mercados”, atualmente, não querem nada mais do que o indicado por Foucault: corpos dóceis e manipuláveis. Dessa forma, resolvidos os problemas morais no âmbito exclusivo da interioridade do indivíduo, estando ele em paz com a consciência, não resta nada mais a fazer que matar o tempo shoppeando nos corredores do Iguatemi (perdão, Boulevard).

No sentido de concluir, academicamente falando, se percebo isso que chamei de "orientalismo" como um mergulho na mediocridade e no maniqueísmo, tampouco me satisfaço com a noção da diluição do “eu” numa cegueira coletiva. Se anulo a minha individualidade no mundo, a chance de me transformar num corpo dócil é tão latente quanto o inverso. Primeiro, porque entendo ser um crime lesa-humanidade alguém abrir mão da riqueza que é a particularidade do seu ponto de vista. Segundo, porque somente nos compreendendo em relação ao mundo (e isso só é possível se existe um “eu”) é que podemos definir os parâmetros da nossa ação dentro dele. E ponto.

sábado, 27 de junho de 2009

Janela.

Gosto de viajar olhando pra fora do ônibus. Sinto claustrofobia quando sento na poltrona do corredor. Olhar demais pra dentro dá náuseas. Um desespero. A passagem do mundo pela janela do ônibus me liberta, eu abro a janela e respiro. Não por outro motivo me dedico a esse papel um tanto ridículo de escrever aqui: preciso jogar pra fora os excessos de eu mesmo que acumulo durante o dia. Como um corpo que se devora e cujo sistema digestório não é capaz de absorver tudo, eu vomito isso aqui [por isso o ácido]. Senão pode dar merda. Ou pior. Se absorver tudo posso ficar tão obeso que não consigiria me mover.

Este blog é o meu sanitário público.

Pelo menos tenho talento para metáforas de mau gosto. Por falar em mau gosto, Serrinha faz a maior vaquejada do brasil. Não gosto de vaquejada. Nem de rodeio (sinto certo nojo). Esse ano tem Claudia Leite, aquela moça sofrível porque almeja destronar aquela outra que pelo menos é original. Preciso parar em Serrinha pra descobrir o que há de bom na cidade (sempre há).

[a poltrona desse ônibus é horrível]

Conceição do Coité é uma cidade simpática e organizada. E tem uma fonte luminosa de bom gosto na praça – algo que eu nunca imaginei que pudesse existir. Em Santaluz eu passo sempre às oito e trinta. Na saída da cidade, onze casas sempre estão com as portas da sala abertas. Oito delas assistem o jornal nacional. Aquela mecha branca de Willian Bonner não me convence de que ele é uma pessoa séria. Vocês já o viram imitando Clodovil no you tube? Coloquem na busca: Willian Bonner + Clodovil.

[reparem no bico ridículo de bonnner]

[sempre acordo ]A FTC de Cansanção faliu. [Ou mudou de lugar]

[o monte merece um post futuro]

A lua que me recebe em Monte Santo é estarrecedora de linda. Lembra Catulo da Paixão Cearense. Mas o ‘Monte’ não é só. O ‘Monte’ é muito. O ‘Monte’ é reticências...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

São João.

No dia 21 alguém me disse que com o domínio dos eletrônicos e o escanteiamento do forró pé de serra o são joão já era. Pensei rápido e discordei. O são joão está aí, vivo. Nós (e me incluo aqui já na categoria dos saudosistas) é que ficamos velhos. Se antes a zabumba batia no compasso da nossa pulsação, hoje são as batidas sintéticas do teclado que orientam o ritmo da dança (o forró é feito pra dançar). Eu não gosto da batida de teclado, mas muita gente gosta.

Eu gosto é de Aviões do Forró.

E como diz Gil, gosto de gostar. Eles vieram pra sofisticar a batida eletrônica. Na linha evolutiva do forró eletrônico eles são tão vanguarda em relação à 'calcinha preta', por exemplo, quanto o 'fantasmão' é em relação ao 'é o tcham'. Eles inventaram uma batida que 'quebra' de uma forma muito agradável e sofisticada o tempo da música (riquelme na 'batera'); o contrabaixista parece ter compreendido essa 'sofisticação' e faz coisas inacreditáveis em cima da linha da bateria; os metais também são impecáveis e me lembram 'los hermanos'. A prova de que estou ficando velho e da sofisticação desse novo forró é o fato de eu não saber dançar nesse novo compasso (assim como nunca consegui dançar arrocha). Na minha opinião, eles fazem forró tradicional. Mais que isso: inventaram uma tradição. Se o mestre lua cantava as caminhadas dos sertanejos no sertão de canindé, a música de aviões do forró retrata hoje o que há de mais típico nas cidades sertanejas do interior. Ninguém mais anda a pé.

As motocicletas se multiplicam como pragas na lavoura de feijão.

A linha que separa o mundo 'urbano' do 'rural' está se liquefazendo (para usar o termo de baumman). Os adolescentes estudam na cidade, acessam a internet, tem orkut, e a tarde vão bater feijão no terreiro da casa. Fico intrigado em pensar o que passa pela cabeça deles. Eu, sinceramente, estaria completamente desorientado. E talvez o reflexo dessa 'desorientação', agravada pelo próprio fato de serem adolescentes, seja a fotografia perfeita da cena "alô, tô num bar, chegue já! tô aqui comendo água, fazendo farra'.

[retorno ainda a este tema. tem muito caroço nesse angu]

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Email.

(o bloguer/blogspot é da google também. depois voce diz que minhas paranóias com o google não tem fundamento. eu quero evitar aderir a tudo que o google fizer porque o google quer virar uma nova microsoft. então, se eu e muitas outras pessoas não mudarmos tudo pra google, ele não vai conseguir dominar o mundo. eu tenho orkut e esse blog agora. o flick é do google? não me espantaria. e voce ainda aderiu ao gmail, como todo mundo. eu não gosto do gmail. gosto do yahoo porque o yahoo queria ser igual ao google no começo, mas não conseguiu e hoje já não é mais uma empresa tão ambiciosa. não me constrange oferecendo uma série de serviços que não servem pra nada. eu vi numa reportagem que na sede da google, nos EUA, não trabalham mais do que 40 pessoas. imagine 40 pessoas dominando o mundo! a google é pequena e a rede é vasta. a batalha entre a anarquia e o oligopólio é o futuro da internet. é bom ir pensando desde já de que lado da trincheira a gente vai se posicionar. eu fiz um blog no google para estar do lado da anarquia, mas como o blog é da google, é o oligopólio que me sustenta. otário. ou será que o otário sou eu?)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Editorial.

Evitarei postagens longas, como abaixo, por entender que a comunicação no mundo virtual exige textos curtos e certeiros. Afinal, proponho este espaço como lançamento de 'fragmentos de pensaçoes' justamente porque aqui não cabem pensações inteiras.

O texto abaixo é uma primeira exceção e não necessariamente a última. Venci a resistência inicial de publicar algo que aparentemente trata da minha vida privada - que não me agrada expor - porque ele traduz com uma clareza que me impressiona o ponto de vista a partir do qual lanço meus fragmentos.

Fundamentalmente, nele me agrada a clareza com que demonstro ter finalmente extirpado qualquer sentimento de culpa ainda guardado no baú. Despreguei Jesus da cruz. A partir de então, minha responsabilidade com o mundo funda-se numa opção que tem origem no amor que ao mundo dedico, e não por qualquer sentimento mesquinho de que não fiz o suficiente e devo me penitenciar. E ponto.

[p.s. esse sentimento mesquinho a que me refiro associo meio que automaticamente a certas figuras do movimento estudantil (quase todas); mas eu ainda não me atrevo a aprofundar nesta e em outras opiniões sobre eles (apesar de ser tentador) porque tenho alguma noção do perigo das pessoas concordarem comigo.]

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Quarto.

O meu quarto tem banheiro e isso representa, de forma geral, um protesto pela manutenção de um mínimo de conforto material. Não gosto da miséria nem tampouco da estética oriunda dela enquanto idealização de aproximação pessoal de um modo de vida que hoje não preciso manter. Não é retornando aos desmandos impostos pelas necessidades primárias que pretendo tentar compreender as pessoas, o mundo e o meu papel dentro dele. O pouco – mas conforto – que exijo integra uma concepção de que ele é necessário para manter certa tranqüilidade no fazer e pensar as coisas, não necessariamente nesta ordem.

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O quarto não é somente o lugar em que minha individualidade se impõe na minha casa, na qual os espaços públicos contemplam tão bem a síntese da nossa pequena sociedade doméstica; é o ponto convexo oposto ao côncavo da minha relação com o mundo e com as coisas do mundo. É onde o meu lugar no mundo exterior também está representado, como nos livros à esquerda do computador portátil no qual escrevo, mas o está fundamentalmente em relação com um conjunto de outros mundos que, de alguma forma, refletem o estado de espírito do meu momento.

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O meu quarto é amplo o suficiente para visualizar com clareza, de qualquer ponto em relação a ele, a forma como esses mundos que hoje compõem o meu modo de ser se relacionam. Sobre a mesa de estudos está este computador portátil, adquirido de terceira mão e defasado tecnologicamente, contudo, eficiente como meio de me fazer expressar com a precisão que almejo. Atrás do computador portátil, recostado na parede, um LP de Elomar Figueira de Melo, ilustre cantador das trovas do sertão. Os livros ao lado esquerdo, citados anteriormente, fazem parte de um universo que poderia chamar de “pesquisas aplicadas”. Reforma agrária, comunidades tradicionais, teorias progressistas do direito, entre outros semelhantes, se empilham em fotocópias cujos textos estão frequentemente grifados e, vez ou outra, comentados com caneta azul.

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Do lado direito, estão empilhados três livros que representam o meu deleite e o meu prazer em perceber como é possível pintar, compor, criar outros mundos a partir da literatura. Sem ela - e sem a arte de um modo geral - o mundo seria tão monótono que a vida tão logo se tornaria insuportável na terra. O primeiro, sobre os outros, mas não necessariamente em ordem de importância, a Arte de Escrever, de Shopenhauer, que tem me feito compreender a importância de ter clareza de idéias no momento da escrita; As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, que representa em mim a possibilidade de perceber o mundo enquanto narrativa fantástica e ao qual sempre recorro nos momentos derradeiros de produção intensa e autônoma de pensamentos; por fim, as Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, que representam a síntese, que considero encantadora, entre os meus mundos, os mundos de Shopenhauer e as cidades-mundos de Calvino. Estas três obras sobre a minha pequena mesa de estudos representam com algum êxito a minha atual proposta de contato com o mundo literário.

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Abaixo delas, alguns textos fotocopiados – que pretendo utilizar no último capítulo da minha monografia – aos quais ainda não me dediquei sistematicamente. Eles fazem parte de uma teoria, a meu ver, bem intencionada, mas que ainda me soa extremamente duvidosa. Neste último capítulo do trabalho abjeto que entendo ser a minha monografia, pretendo abordar as tendências do multiculturalismo no estado contemporâneo com muita desconfiança do êxito dos seus propósitos. Isso reflete uma opção muito bem pensada de não ovacionar tão efusivamente e gratuitamente o que entendemos como “avanços” do direito na atualidade. No mundo limitado dos auto-proclamados operadores do direito, esse festejo eterno pelos avanços da constituição é imbecil e patético. Prefiro, entendo como mais honroso, prazeroso e útil, refletir e pensar sobre o que entendemos como “avanços” da contemporaneidade a partir da perspectiva dos seus possíveis efeitos colaterais no futuro até o ponto em que alcança a minha capacidade de projetá-lo.

Celular.

Nunca consegui usar uma agenda de forma que necessitasse consultá-la para marcar um novo compromisso. Prefiro usar o calendário do telefone celular, que me parece mais prático.

O celular é um aparelho excepcional.

Reúne em um só objeto um calendário – no qual posso inserir lembretes sobre os compromissos do dia; um relógio para que eu possa calcular a velocidade que preciso executar minhas tarefas ordinárias; uma calculadora, para saber cotidianamente como minha situação financeira virtual se reflete em números; um despertador que garante que eu acorde às seis e trinta, mesmo que agora sejam... quatro e trinta e três da manhã; e, como qualquer objeto que busca a realização da felicidade humana possui necessariamente algum calcanhar de aquiles, ele tem o único inconveniente de receber ligações de pessoas com as quais muitas vezes não desejo falar. São poucas as exceções. Confesso, entretanto, que essa função não deixa de ter utilidade. Ainda que eu não consiga deixar de sentir certo desconforto.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Risca Faca

A rodoviária de Euclides da Cunha é nitroglicerina pura.

Estando lá, vez em quando, entre 3 e 6 da manhã, já presencei cenas memoráveis. Soube que outro dia, quando feliz ou infelizmente eu não estava lá, um travesti brigou com um bêbado porque ele não quis pagar o que devia a amiga prostituta.

Quando saio às 6, o bar ainda está bombando (literalmente, às vezes)

É o típico progresso à lá Br 116.

Mas o pessoal se diverte.

E eu gosto do Brasil, afinal.

sábado, 13 de junho de 2009

Tchau, Mamãe.

"No decote do horizonte divisei o seio da saudade"

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Essa frase está escrita no painel caleidoscópico da rodoviária da Feira. Certamente uma frase de paralamas (e não parachoque) de caminhão.
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Seio e Saudade.
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Sempre desconfiei que os caminhoneiros não lidam bem com essa coisa do édipo. Quando, na estrada, me deparo com a clássica "AMOR SÓ DE MÃE" recordo-me imediatamente dos devaneios do velhinho do cachimbo.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Caos.

Quem acredita na existência de alguma ordem no mundo, deve rezar um pai nosso e duas ave's maria antes de dormir.

[e não acordar]

Orientupis.

Uma mulata oriental na Estação da Lapa.

Inclassificáveis. Somos mesmo inclassificáveis.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Não cague no mar.

"Não faça no mar aquilo que voce costuma fazer no banheiro. [pausa] Se é desagradável entrar no banheiro e percerber certas coisas no sanitário, imagine para quem está se banhando no mar?"

Essa campanha é promovida pela rede de TV dos ônibus urbanos da Cidade da Bahia. Ao publicitário faltou a presença de espírito de resumir ao final - ou mesmo substituir - o texto sutil e covarde por uma frase com "pegada" bem mais simplória e eficiente: "NÃO CAGUE NO MAR". E ponto.