domingo, 6 de dezembro de 2009

Réquiem nº II


Baratas são sujas. Seres marginais do mundo animal, não gostam de lugares limpos. Humanos sucedem-se no tempo para entupir-se de lixo até vazar pelas narinas. Não sem surpresa me encontrei diante deste dilema aristotélico. Poucos hão de conversar comigo sobre tais inutilidades. Raros. Ocorre que o acaso é um bom pregador de surpresas, e só consigo conviver com ele quando empenho-me em desafiá-lo. Afora meu caso com o acaso, o fato é que os poucos que mencionei em algum momento deste parágrafo existem, apesar de raros, e não sem acaso os e as vejo frequentemente.

Enquanto conversava na sala d’aqui de casa, momento em que os pessimismos habituais me perturbavam a compreensão do outro, distraí-me enquanto uma barata emergia no ralo do meu banheiro. Com a benção de alguns copos de cerveja, minha uretra anunciou os instantes últimos de torelância que antecedem a descarga da bexiga.

A luz, por sua vez, anunciou a presença da barata em meu banheiro. Percebendo a minha presença, dissimulou uma curiosidade que não me fez exterminá-la num primeiro momento. Aguardei meio que pacientemente o teatro da barata, com o instinto brilhando no papel protagonista. Suportei o seu comportamento infame e imaturo, típico do seres de baixo ou nenhum desenvolvimento intelectual, enquanto garantia que a última gota de necessidade fisiológica caísse naquele vaso sanitário fabricado pelas valorosas mãos que servem à família real inglesa. Guardei a minha arma violenta, já que não quereria simplesmente atacar a barata com um chinelo – emporcalharia ainda mais o meu banheiro.

Recorri a um conteúdo exterminador de possibilidades, o poderoso e eficiente baygon. Pensei borrifar sobre o teatro das possibilidades mil bombas atômicas, mas vi a humanidade exterminada antes que a terceira delas precisasse fazer efeito. Entre a segunda e a terceira explosão, uma agonia feroz incendiou os espíritos humanos vivos a tal que os fizeram decidir suicidar-se coletivamente no último segundo do último dia do ano de 2011.

Paradoxalmente, gosto do baygon porque seus efeitos permitem que a morte do espírito preceda a morte do corpo. [Ainda não li Crime e Castigo e me penitencio por isso] Não gostei, apelando à coerência, deste tempo e meio entre os dois anos cabalísticos, no qual os seres humanos foram abatidos de forma lenta, gradual e segura, por esta depressão tão profunda como o fundo da terra mais infinito. E no derradeiro dia, em trinta e um de dezembro do ano de dois mil onze, escrevo aos infiéis leitores do provocações. este meu último e breve adeus.

Um comentário:

  1. Ah. A provocação derradeira do "provocações" é permitir que fiquemos presos nas teias das contradições por mais tempo. Prosseguindo [se relacionando] com elas.
    Afinal, eu não gosto de baratas e não gosto de baygon. Pior: não gosto dos instrumentos de morte dos humanos contra os humanos, aniquilando as possibilidades, quaisquer que sejam. Perceber o como e o porquê de estar sendo atingido antes de [e para] reagir, é uma delas. A alienação é a bomba atômica da existência da humanidade. Sofisticada, silenciosa e exterminadora de almas...como os baygons. [por exemplo: se o trágico fim que veio depois da colonização de Ruanda ficasse esquecido no tempo...mas ele é reprisado a cada dia, em diversos lugares do mundo...]
    Eu sou humana. Algumas vezes me sinto uma barata. Eu não gosto que me barateiem e me sinto mal ao baratear. Não gosto que pessoas sejam baratas. Eu não gosto de baratas...mas é impossível não ser cúmplice delas lendo esse "réquiem". Que asfixia! Que o Gregor Samsa nos resgate e xeque-mate.
    Penitenciar-me...Gostaria de sentir menos isso. Mas me penitencio agora por não ter lido ainda "a paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector. A narrativa de uma mulher que repensa a sua existência e a sua relação com o Outro, depois de se "envolver" [digamos assim] com uma barata, ao arrumar o seu quarto. Sobretudo porque me contaram que no prefácio dele vem escrito: "para aqueles que estão preparados". Alguém me disse de maneira bem tranqüila que não se sentia preparado e por isso abandonou a leitura logo nas primeiras páginas. Outros leram e se apaixonaram. Quem está realmente preparado? Cada um sabe de si [?].Conjecturas.
    Tchau, provocações. Morra para, quem sabe, germinar.

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