sexta-feira, 17 de julho de 2009

Conversa. (Lado A)

Não sou eu o único autor destas pensações. Pretendo colocar aqui o meu ponto de vista sobre um papo de sofá com Davi Lara, ontem a noite, na sala da república dialógica lá de casa. Nem seria preciso escrever que são fragmentos apenas, mas prefiro ser redundante que incompreendido.

Dizia a Davi Lara que li outro dia na internet que existe uma espécie de papoula que só nasce em uma pequena região do norte da Índia. É conhecida como a “papoula negra”. A informação era de que ela seria capaz fazer com que pessoas conversassem por dias seguidos sobre minimalismos inacreditáveis, porque seu princípio ativo estimularia uma expansão absurda do nível de entendimento do entendimento do outro.

Dizia ainda que gosto da internet porque ela era uma saída razoável para que certas conversas não se percam em ecos como as nossas palavras naquela sala, naquele momento, que entravam pelas paredes, em cada fresta do piso, debaixo do sofá onde certamente haveria uma teia de aranha, na qual estaria preso um daqueles casulos que mais parecem uma pequena bola de veludo branco, ou uma visão ao longe de uma imensa plantação de algodão, que ao ser aproximada, nos mostraria que ali havia trabalho no movimento das mãos dos catadores do algodão, que posteriormente iria para uma usina se transformar pela ação de outras tantas mãos em movimento em, por exemplo, roupas como a que estávamos vestidos.

O trabalho é mesmo algo fascinante. Conversando sobre o pensamento materialista [um paradoxo], disse que eu me encontrava hoje numa zona indistinta entre ser um materialista inconformado ou um metafísico mal resolvido, ora pendendo a um, ora a outro. Estou num ponto em que esses extremos se tocam, num canto em que nenhum dos dois consegue me convencer satisfatoriamente de nada. Tenho desconfiado de tudo, afinal. Mas isso não me joga na vala comum dos relativistas. Também não me satisfaço com eles.

Concordamos, Davi Lara e eu, que o materialismo, de certa forma, precisa de rigidez em sua forma de pensar e, principalmente, de explicar o mundo. Essa rigidez nem ele nem eu gostamos. Ele muito menos que eu, certamente. A rigidez do pensamento materialista nos coloca num esquema que parece sufocar o livre pensar, porque se existe rigidez, existem também limites para pensar a própria estrutura do pensamento. Os materialistas [inteligentes] costumam direcionar essa contingência para a dialética que Marx salvou em Hegel. Mas quando a própria dialética hegeliana assume esse aspecto de dogma, os limites mais uma vez batem à porta ao pensamento materialista.

Disse a Davi Lara que gosto da forma de pensar de Hannah Arendt, filósofa alemã considerada liberal pela esquerda marxista, e de esquerda, pelos liberais. Arendt dialoga, entre outros, com o próprio Marx, com Heidegger, seu orientador e amante, Santo Agostinho e Walter Benjamin. Como falávamos de materialismo, comentei um pouco do diálogo de Arendt com Marx, que acho muito interessante.

Pedindo licença para discordar de Marx, respeitosa da grandeza de sua teoria e receosa de ser jogada na vala comum dos críticos oportunistas da obra do pensador alemão, Arendt entende que ele, ao colocar o trabalho como única ação que representa a totalidade da relação do ser humano com o mundo, parece não ter ‘previsto’ certas conseqüências nefastas desta absolutização.

Ainda não li ainda A Condição Humana, obra em que ela trata deste tema com profundidade. Mas me atrevo a entender o que Arendt propõe. Acredito que ela chegou a essa conclusão colocando a nossa atual sociedade de consumo como resultado desta centralidade no trabalho. Não me recordo bem, mas acho que ela faz explicitamente essa relação. Devo estar escrevendo sobre algo que li. Enfim. Essa conclusão me parece muito pertinente. Mas antes de adentrar nela, vamos antes ao que concordo com Marx.

O trabalho é quem produz a riqueza no mundo, a partir da intervenção qualificada que o homem nele faz; a organização deste trabalho, no capitalismo, é controlada pelo que ele chama de “capital”, representado pela força das ‘leis de mercado’, da qual, inclusive, são escravos os próprios sujeitos capitalistas. O que Marx parecia sugerir, é que a absolutização do mundo do trabalho acabaria colocando o controle dele nas mãos dos seus sujeitos, os trabalhadores.

Foi um risco, acho que na opinião de Hannah Arendt e na minha. A absolutização do trabalho que Marx propunha desprezava tanto o pensamento independente das relações estabelecidas com o mundo, quanto o resultado do exercício do pensamento em relação à práxis: a ação humana menos trabalho. Entendo que Arendt quis dizer que o trabalho era apenas uma forma de relação com o mundo, ou seja, não era a única. Esse certo “desprezo” pelo pensamento independente (chamado simplesmente de “pensamento burguês” por ele) fez com que a teoria materialista de Marx se fechasse num ciclo em que a própria dialética estaria comprometida pela necessidade de rigidez do pensamento.

O pensamento independente seria uma terceira forma de conceber a relação entre ser humano e natureza, além do trabalho – mas não sem ele. Seria a partir desse pensamento que o ser humano deveria elaborar as suas intervenções mais relevantes no mundo, colocando-as em prática através da “ação”.

Com o mundo na palma da mão, tentei mostrar a Davi Lara as minhas conclusões: a potencialidade do trabalho humano é tão avassaladora que as necessidades mais básicas de toda a humanidade já teriam sido supridas desde meados do século XX, caso a riqueza produzida não fosse controlada pelas leis de mercado, que necessitam da desigualdade para seguir hegemônicas; ocorre que a tecnologia multiplicou ainda mais essa capacidade do trabalho, e fez com que produzíssemos muito mais do que precisávamos para manter uma vida confortável; fez com que o mercado entendesse necessária a existência de um exército de reserva para mão de obra; afinal, fez com que o consumo explodisse para dar conta da nossa própria capacidade de produção.

Arendt lembra que com a sobrevalorização do trabalho e da economia, que ocasionou a perda da nossa capacidade de pensar politicamente o mundo, tudo o que sobrou como momento de lazer para nós foi consumir o que produzimos. Até a arte, como diria Adorno, precisou adentrar na onda gigante da lógica cultural do consumismo. E já escrevi aqui sobre as conseqüências de colocar o consumo como forma dominante de lidar com o mundo. Agora o consumo, uma criação, um efeito colateral da sociedade do trabalho, avança sobre a criadora e ameaça, nestas décadas pós-modernas, lançar as bases para um mundo sem trabalho.

Eu, sinceramente, entendo que seria uma merda completa trocar o trabalho pelo consumo. Entendo o tabalho como uma forma de ser livre, e não de ser prisioneiro da sua lógica. Acredito que o trabalho, se bem entendido, pode nos libertar da necessidade. Já o consumo, em sentido inverso, nos aprisiona no reino da necessidade. Milton Santos é quem nos chama atenção para o fato de que hoje o consumo é quem representa o verdadeiro fundamentalismo.

Enfim. Davi e eu concordamos, depois de pensar um pouco, que deveríamos encomendar uma remessa de papoula negra do norte da Índia para a república lá de casa. Sem ela, com o tempo, certamente as nossas conversas serão muito monótonas. Neste mundo globalizado, nossa república não pode estar distante do comércio a nível mundial. Entretanto, como nós ainda nos recusamos a operar num mercado internacional que tem o dólar como moeda padrão, sugiro que esperemos passar essa onda de Estados Unidos no mundo para fazer a encomenda aos nossos amigos indianos.

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