sexta-feira, 3 de julho de 2009

A Feira.

Nos subterrâneos do comércio da Feira, adolescentes negros pobres morrem estatisticamente em razão de disparos de armas de fogo montados em motocicletas. Alguns bairros carregam Feira no nome e enumeram cardinalmente algumas das suas faces múltiplas. Uma Feira existe no limiar entre o abandono do passado e o fracasso de um projeto de futuro; nem boiadas, nem progresso. O CIS parece uma cidade fantasma. O CIS é tão alienígena em Feira de Santana quanto os viadutos de José Ronaldo. Quando passo no complexo viário da cidade nova penso estar em outra cidade. Ao sair do viaduto e novamente enxergar a velha Feira, compreendo que sem as suas intervenções alienígenas Feira não seria uma cidade tão intrigante.


Os viadutos são símbolos de um progresso que tomou algum atalho para longe do caminho da Feira. Fui informado que crianças levantam os braços e gritam - felizes e inocentes - ao passarem pelos viadutos. É como uma promessa cumprida. José Ronaldo gosta de promessas cumpridas. São, em verdade - e com o perdão do trocadilho, promessas compridas. Duvido que alguém consiga alcançar a vista na outra ponta. No entanto, não há sensação indescritível como quando no trânsito da Av. Getúlio Vargas deparamos, como num filme de David Lynch, com um viaduto sobre a Av. João Durval.


José Ronaldo é um gênio. Vai conseguir entrar para a história de Feira percebendo o quão simples parece a empreitada: venda ilusões a um preço caro de realidade. O viaduto da cidade nova está superfaturado de realidade; ele representa a ilusão de que Feira conseguiu chegar aonde queriam os seus cartolas dos anos cinqüenta. Como se numa remota e bela manhã, o progresso tivesse chegado em lombos de burros, numa imensa tropa de caboclos que, após cumprida a missão, retornaram para o seu universo bordado de couro e não mais empoeiraram com suas boiadas os móveis dos casarões da Senhor dos Passos. Daria um cordel: “A chegada do Progresso em Feira de Santana”.


***


(Feira deveria respirar aliviada pelo fato do progresso ter se esquecido da cidade. O progresso chegou a Canudos em 1897, junto com as estratégias do Marechal Bittencourt. Se o progresso aqui tivesse chegado, não se ouviria ondas de AM nas manhãs brancas de obscuras neblinas; não haveria o odor das entranhas da cidade exalando do esgoto no Centro de Abastecimento; não haveria paralelepípedos na avenida Getúlio Vargas; não haveria vendedores de frutas no ponto de ônibus da praça da marisa; não haveria tanto emprego no ramo da pirataria; não haveria feiras que só são possíveis aqui, debaixo desse céu e em cima desse chão...)


***


Uma legião de trovadores sub-urbanos cantam as feiras das madrugadas em violões loucos e desafinados. Feira é linda. É difícil decifrar essa esfinge. Os olhares estrangeiros aqui estão dentro de nós. É difícil encontrar um feirense nato de sessenta anos. Feira é uma jovem cidade feia. O ônibus do transporte coletivo de feira é verde para colorir o cinza da cidade. Há ônibus vermelho também. Verde e vermelho são as cores do fluminense e da bandeira de Feira. O Fluminense foi bi-campeão baiano em sessenta e três e sessenta e nove. De lá pra cá nunca ergueu a taça do baiano, ao que me consta. Mas é assim que eu gosto de Feira.


Desnortear-se aqui deveria ser um esporte nacional. O Brasil deveria, desde já, beber frustração dos olhos d’água de Feira e sentir uma possibilidade que o aguarda no futuro. Lagoas secas. Toda esperança será castigada. O Brasil pode se tornar uma imensa Feira de Santana. Eis a profecia. O Brasil vai ficar cinza como a fachada da igreja do senhor dos passos. Outros brasis emergirão; outros ventos noutras direções soprarão a brasa. E as Feiras de hoje, cinzas leves que serão, flutuarão nestes ventos até repousarem num velho móvel empoeirado de algum porão de museu da Cidade da Bahia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário