Se havia uma predisposição em retornar ao tema do post ‘São João’, não poderia perder o embalo de um bom rebote da provocação lançada. Ciente, entretanto, da vastidão do tema e da impossibilidade de esgotá-lo naquela oportunidade ou mesmo aqui, como um advogado esperto que coloca letrinhas miúdas em rodapés de contratos, alertei que retornaria àquela temática por haver ‘muito caroço no angu’. A bela análise de discurso – que na internet chamamos de ‘comentário’ – elaborada por Lorena comprova isso. [confiram lá no post referido antes de prosseguirem a leitura]
Uma primeira questão que podemos nos debruçar, na linha proposta pelo comentário, é quem influencia quem nesse jogo entre o cotidiano e a captura dele pela arte. [sugerir que ‘aviões do forró’ é arte é uma grande provocação] Essa me parece ser uma daquelas questões que tem como resultado após dias, meses, anos, décadas e séculos de profundos debates estético-filosóficos, a chegada ao enigma fundamental da existência humana: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
[aliás, essa coisa da negatividade constitutiva do ser, tão bem a cara do nosso tempo europeu, é filosofia pequena diante de tão grandioso mistério]
Deixemos de lado as divagações. Obviamente que não conseguirei aqui dar conta dessa primeira questão. Entretanto, como ela é fundamental para entender essa temática, posso então levar adiante a principal tarefa a que gosta de se dedicar o intelectual: falar sobre o que não sabe.
Eu compreendo essa mudança de paradigmas, que deixam obsoletas certas visões fantasiosas de mundo [como o mito do amor romântico], como reflexo dessa dissolução das identidades rurais e urbanas no interior. É uma mão dupla, aliás. É muito comum o jovem de classe média da cidade deixar, às vezes, o carro na garagem e montar cela em cavalos que passam batendo as ferraduras nos paralelepípedos. Aqui o fator cultural e simbólico talvez fale mais forte.
Já em relação ao jovem da zona rural, o contexto é um tanto mais perverso. [escrevo isso, mas não pretendo aqui pregar ninguém na cruz] Com a viabilização do transporte escolar, garantido pelos recursos do FUNDEF desde os idos de 1996, foi notável o avanço do projeto do governo brasileiro, desde efe agá cê, de ‘universalizar a educação’. Aliás, onde se lê governo brasileiro, leia-se Banco Mundial. Ocorre que essa gurizada foi jogada num sistema educacional completamente fora da sua realidade do campo. Na escola, eles certamente devem aprender coisas bem úteis, como, por exemplo, a usar a fórmula que converte graus celcius em farenheint.
Faço a ressalva, entretanto, que não gosto de pensar que os jovens da zona rural são obrigados a viver e morrer lá somente porque lá nasceram. Se eu pensasse dessa forma, deveria, por questão de coerência, retornar para o lugar em que nasci e passar a vida inteira cuidando de inventários e separações de casais. Gosto de pensar que para esses jovens basta o poder de escolha.
Nada que não dependa da vontade humana deve ficar engessado no tempo.
Ficar na roça hoje, significa estar em parcelas de terra cada vez menores [as famílias nordestinas, como sabemos todos, costumam ser grandes], sem perspectiva de melhora de vida, e ainda sem acesso ao orkut, twitter, msn e outras tantas modernidades que assim como nos faz dependentes, também o fazem com eles. Não significa que não existam oportunidades de vida na zona rural. Muitas vezes, basta um pequeno projeto que forneça, por exemplo, matrizes de cabras durante o período de cinco anos para que um jovem consiga montar um pequeno rebanho capaz de garantir seu sustento. Falta é apoio e vontade política mesmo.
As conseqüências dessa quase expulsão da roça para a cidade trazem consigo uma carga incalculável de frustrações acumuladas. Talvez daí que saia a faísca dessa explosão do ‘estar por cima’, como diz lorena. Não sei se entro aqui numa psicologia barata, mas acho que é um ímpeto do ser humano projetar suas frustrações na busca por outros desejos, talvez até mais fáceis de alcançar. Não é a tôa que a aparência tem sido cada vez mais valorizada por esses jovens. Os rapazes, por exemplo, estão agora numa de fazer moicano – e não há como não rir, às vezes, do resultado disso.
Nessa predominância do mundo das aparências, algo que no ‘mundo civilizado’ já é realidade há muito tempo, não é pra menos que manifestações das opressões nossas de cada dia se manifestem com mais força também. Neste sentido, as letras de aviões do forró retratam com alguma fidelidade a mutação que o machismo já existente sofreu na emergência das identidades ‘rurbanas’. Da mesma forma, o contrabaixo e a bateria (os sons graves) são marcantes em aviões do forró talvez pelo fetiche de instalar trios elétricos em porta-malas de carro. O grave explora melhor a qualidade do som automotivo, que se for bom mesmo não ‘chia’ com o volume muito alto. E parece óbvio que quem está por trás da banda compreende isso. Essa linguagem dialoga diretamente com esse novo mundo em que o status depende da conciliação entre a ‘fuleragem’ e a vida de trabalho, que por sua vez, garantirá o sustento da aparência de uma vida somente composta de prazeres. Sexo, cerveja e forró.
O fuleiro é um tipo de ‘malandro’ como o carioca, só que nascido no ceará.
Existe para o fuleiro, assim como para o malandro, um padrão de comportamento moral muito bem definido e, dentro dele, um correspondente feminino. É aquela que ‘faz valer na cama’ e que ‘se vinga’ da traição, como já disse lorena. Aliás, tem até uma letra que diz ‘mulher não trai / mulher se vinga / mulher cansou de ser iludida’. Elas adoram essa. Nessas elas se impõe e não duvidem, elas conseguem provocar a fuleragem [que não gosta nada de ser ‘traída’]. E assim como o malandro carioca, o fuleiro também enfrenta a ‘dureza’ de estar ‘por baixo’ com o ‘gole de cachaça’, fazendo graça de si mesmo. Mais uma vez, a linha que separa o estar ‘por baixo’ do estar ‘por cima’, quando se leva a vida no bar para ‘beber, cair e levantar’, também se move como se liquidificada estivesse.
[a comparação entre o malandro e o fuleiro é fruto de pensação coletiva da república lá de casa]